MEMÓRIA DE MULHERES CUIDADORAS DE IDOSOS (AS) DEPENDENTES: SIGNIFICADOS ATRIBUÍDOS ÀS EXPERIÊNCIAS DO CUIDADO INTRAFAMILIAR
Resumo
APRESENTAÇÃO: Dados demográficos revelam que o Brasil vivencia um rápido envelhecimento da sua população, fenômeno conhecido como transição demográfica. Atrelada a essa experiência ocorre ainda, uma transição epidemiológica, caracterizada pela redução das doenças infectocontagiosas e parasitárias, e incremento das doenças crônicas nas idades avançadas. A convivência com doenças crônicas impacta significativamente o perfil da morbimortalidade dos brasileiros e, muitas vezes, implica na necessidade de cuidados permanentes, devido a fragilidades e dependências adquiridas. Na ocorrência de dependência de cuidados para a pessoa idosa, a mulher tem assumido ao longo da história do cuidado humano, a responsabilidade por estas ações em espaço intrafamiliar, tornando-se a cuidadora familiar principal. Todavia, nota-se uma escassez de estudos que retratem como estas mulheres cuidadoras tem vivenciado o processo de cuidar em contexto de relação interpessoal com o idoso (a) cuidado, com a família, e com a sua sobrevivência na condição de pessoa humana nos processos da constituição social da identidade de gênero e sua orientação para o cuidado. Este estudo baseia-se em princípios norteadores dos processos de construção das identidades de gênero a partir das teorias feministas psicanalíticas e do interacionismo simbólico, do envelhecimento humano no contexto das Políticas Públicas e do cuidado humano e sua relação com a velhice. Tem como objetivo geral, compreender como se desenvolve o sentido da memória de mulheres cuidadoras, e o significado atribuído às experiências na relação de cuidado intrafamiliar junto à pessoa idosa dependente. Sabemos que as lembranças evocadas poderão ser da instância pessoal ou social e que estas poderão (ou não) individualizar a memória do grupo de pertencimento ou da comunidade na qual os indivíduos estão inseridos. No entanto, a importância do estudo está na possibilidade de reviver estas lembranças que, certamente, contribuirão para caracterizar parte da história de vida com seus significados e vivências. DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO: Este estudo é parte do projeto de tese: O sentido da memória de mulheres cuidadoras de idosos (as) dependentes: Identidade de gênero e orientação para o cuidado. Trata-se de uma investigação empírica de natureza qualitativa, em que o foco se volta para o conteúdo, sendo o ponto central do estudo, o alcance da realidade por meio do universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes. Tem como categoria metodológica a apreensão da memória coletiva, e a historia oral de vida de mulheres cuidadoras de pessoas idosas dependentes em contexto familiar. Foi realizado no município de Jequié, interior da Bahia, no período de janeiro a março de 2015. Seis mulheres participaram do estudo, conforme critério de inclusão: mulheres que vivenciam o processo de cuidar de idoso (a) dependente por, no mínimo, três anos. Para produção das informações foram realizadas visitas domiciliares e entrevistas semiestruturadas. As informações foram gravadas, transcritas e analisadas conforme princípios de interpretação da Análise de Conteúdo, o que possibilitou a organização de categorias oriundas das histórias de vida. Para análise das informações foi utilizado ainda, o Programa QSRNVivo 10-chave de licença: NVD10-L2000-KRU84. O estudo atendeu às normas da resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade Independente do Nordeste (FAINOR), sob parecer nº 791.570. Todas as participantes foram instruídas quanto aos riscos, benefícios e objetivos do estudo, mediante apresentação e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) antes das entrevistas. Para garantia do sigilo e respeito ao anonimato das participantes, cada uma escolheu um codinome relacionado à tipos de flores. RESULTADOS: Neste estudo, compreende-se espaço, como o lugar onde ocorrem as experiências, as lembranças concretizadas materialmente, e que evoca permanência e estabilidade. É nesse espaço que o sociocultural é materializado como o lócus do cuidado vivenciado pela mulher cuidadora familiar de pessoas idosas, com suas relações sociais de poder e em um tempo social de envelhecimento populacional com características de feminização. Assim, um cenário marginal, com estereótipos de improdutividade, desengajamento e outros semelhantes constitui a velhice. Segundo princípios teóricos da memória coletiva em relação ao tempo, a memória de uma sociedade estende-se até onde alcança a memória dos grupos dos quais ela é formada. Por definição, a memória coletiva não ultrapassa os limites da sua referência de grupo e não existe memória coletiva que se desenvolva fora de um quadro espacial. As memórias coletivas das mulheres cuidadoras familiares desveladas neste estudo, direcionaram a organização das seguintes categorias temáticas: 1- O significado do ato de cuidar, considerando o viver/envelhecer em família e 2- Os desafios nas experiências vivenciadas pela mulher cuidadora e os modos de superação no seu cotidiano. A primeira categoria aponta que o desempenho de cuidado é permeado por uma construção de identidade em que o processo de individualização e autoconstrução internaliza significados, que ainda definem o papel de cuidar como uma tarefa constituída de sentimentos, atitudes, expressões psicossociais, culturais, opções morais, tomada de decisões, natureza de relacionamentos e obediência espiritual a uma religiosidade. Assim, especialmente por questões morais e por princípios culturais e religiosos, esta mulher cuidadora apresenta uma identidade de gênero orientada para o cuidado, assumindo automaticamente a responsabilidade pelo seu familiar idoso (a) dependente. Para a mulher cuidadora, o papel assumido somente poderá ser exercido pela mesma, pois compartilhar o cuidado de uma pessoa idosa dependente não poderia ser igualmente desempenhada pelo homem. A segunda categoria revela que os desafios nas experiências vivenciadas pela mulher cuidadora se caracterizam pelo sentimento de despreparo e pelas tomadas de decisões inesperadas que envolvem todo o contexto familiar, o que provoca sobrecargas, conflitos com identidades opostas e nas relações intrafamiliares. As mesmas relatam que não tiveram o direito de opção diante da família para assumir a função de cuidadora. Assim, vivenciam a solidão, a dificuldade de acesso ao lazer, a sobrecarga acompanhada de estresse, sem direito a reivindicar junto às outras gerações, a partilha com solidariedade e responsabilidade no cuidado no próprio contexto familiar. CONSIDERAÇÕES FINAIS: Concluímos que a interface das mulheres cuidadoras de idosos (as) dependentes com a identidade de gênero e o cuidado humano permite compreender que existem significados, experiências de caráter sociocultural, sentimentos e atributos morais nas relações intergeracionais no espaço privado instituído da família. A partir disso, subsídios para políticas que priorizem a vida feminina em exercício ético do cuidado, com equidade no envelhecimento, podem ser oferecidos. Concluímos ainda, que o olhar sociológico para as transformações nas relações de gênero no âmbito estrutural intrafamiliar é importante, pois constata a realidade populacional da longevidade e favorece a compensação de carências na experiência em função do gênero. Assim, compreendemos que a dinâmica do envelhecimento populacional e a necessidade de empreender um estado de bem-estar social, fazem com que as famílias desenvolvam entre si um contrato geracional nas suas relações, por estarem mais próximas das pessoas idosas e crianças, as quais necessitam de proteção mediante ações de cuidado. Isso configura experiências de socialização humana e, certamente repercute nos papéis femininos e masculinos na velhice. Por fim, concluímos que os resultados do estudo podem propiciar conhecimentos na área do gênero e envelhecimento no ensino da enfermagem, com vistas a valorização do respeito e garantia de dignidade para a mulher cuidadora familiar enquanto ser humano, independente da condição de saúde/doença vivenciada.
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