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A FABRICAÇÃO DE REDES PELO USUÁRIO NA PRODUÇÃO DO SEU CUIDADO
Última alteração: 2015-11-23
Resumo
A aposta de se trabalhar em redes está no SUS desde a Constituição de 1988. O capítulo da saúde estabelece em seus princípios e diretrizes que elas sejam regionalizadas e hierarquizadas. O mesmo acontece na Lei 8080, no capítulo 2, quando é abordada a descentralização político-administrativa com direção única em cada esfera de governo, também enfatizando a regionalização e hierarquização dos serviços de saúde. Mais recentemente no Decreto 7508/2011, a construção de redes estruturadas é detalhada, colocando a atenção básica como porta de entrada preferencial, acrescentando que o usuário pode acessar o sistema por meio de outras redes criadas a partir das características de cada Região de Saúde. Essas redes formais são, em princípio, uma proposta de estruturação rígida, apostando que o cuidado pode ser produzido de maneira contínua por meio de um sistema de informação que ligue usuários, gestores e prestadores de serviços. A população e o território devem ser conhecidos por meio do perfil epidemiológico, e uma combinação entre racionalidade econômico-financeira e diagnóstico epidemiológicodefine a oferta de serviços de saúde para promoção, prevenção, diagnóstico, tratamento e reabilitação, a partir de diferentes estratégias e construção de programas. As redes fabricadas pelos serviços de saúde frequentemente têm uma formatação fixa, sólida, previsíveis, como se fossem possíveis de ser controladas, progridem por etapas de um ponto ao outro. Já as redes vivas que são fragmentarias, produzidas no acontecimento, montam e desmontam de acordo com a necessidade do momento, dão saltos de um ponto ao outro, produzem desvios, linhas de fuga aos fluxos instituídos. Portanto, nesta cena, cabe uma questão: em seu desenho, as redes formais são suficientes para atender as necessidades dos usuários? A história de Lóris nos dá algumas pistas nesse sentido. Lóris é uma mulher de 47 anos, moradora de um município de aproximadamente 300.000 habitantes do interior do Paraná que, em sua multiplicidade, é trabalhadora, mãe, namorada, gosta de dançar, andar de moto, de cozinhar e levar a vida do seu jeito. Em uma tarde, após um grave acidente entre sua moto e um ônibus e cento e vinte dias de internação hospitalar, volta para casa acamada, imóvel e tetraplégica. A partir daí, é assistida pela rede formal do município que oferece vários arranjos como: o programa de assistência e internação domiciliar (PAID), serviço de fisioterapia entre outros. Por outro lado, a vida de Lóris demanda necessidades, problemas e desejos que as redes formais não dão conta. Então, outras perspectivas para pensar e produzir novos arranjos, que problematizassem e rompessem com a previsibilidade do manejo dos processos de cuidado, começaram a ser construídos. Foi nesse cenário, que a pesquisa “Observatório Nacional da Produção de Cuidado em diferentes modalidades à luz do processo de implantação das Redes Temáticas de Atenção à Saúde no Sistema Único de Saúde: Avalia quem pede, quem faz e quem usa”, teve início. Este estudo de abrangência nacional é traduzido pela construção de vários projetos qualitativos de investigação. A atenção domiciliar, enquanto uma das redes temáticas propostas pelo Ministério da Saúde, foi contemplada no município de Lóris que, por sua vez, foi escolhida pelos trabalhadores para ser a usuária-guia, opção metodológica da pesquisa. Frente a isso, este trabalho tem como objetivo analisar as redes produzidas pela usuária na busca do seu cuidado. Lóris atua como dispositivo que provoca deslocamentos no instituído e agencia a produção do seu cuidado, superando os limites identificados nos serviços de saúde. Conseguiu ter um efeito disparador, abrindo inúmeras janelas e produzindo, em ato, rede viva. Vai vazando o instituído e, de maneira rizomática, agencia pessoas e rompe com a afirmativa de que os usuários são ausentes de potência e, na sua imobilidade, constrói mobilidades. Seus três filhos se reaproximam e, em diferentes momentos assumem como cuidadores; os vizinhos se mobilizam e realizam adaptações na casa para melhorar a acessibilidade, passam a cortar a grama, árvore, a realizar pequenos reparos para manutenção de sua casa, além disso, dividem os custos de mais uma fisioterapeuta para garantir o atendimento todos os dias da semana. A partir de um movimento da igreja, um guincho foi comprado para facilitar sua saída do leito para a cadeira de rodas; a ex-patroa traz, mensalmente, uma cesta básica; o motorista que a atropelou complementa com materiais de limpeza e assim Lóris vai construindo caminhos para produzir seu cuidado. Nesse momento, o desejo que a mobiliza é ampliar seus poucos movimentos nos membros superiores para conseguir uma cadeira de rodas elétrica, o que lhe trará autonomia para viver. Lóris, apesar de sua imobilidade, produz mobilidade e vida. Conta uma trabalhadora do PAID que ela era uma pessoa que adorava cozinhar e hoje, apesar de imóvel, construiu um novo sentido para a culinária em sua vida, ensina suas receitas para outras pessoas. Tornou-se prática recorrente as equipes que a atendem testarem suas receitas e, vez ou outra, comentar seus fracassos e sucessos com Lóris, apostando que o conhecimento de outros territórios existenciais para além da saúde, constrói vínculo e reconhece a potência outro. É neste sentido que é possível dar visibilidade a: como uma imobilidade é capaz de movimentar novos mundos. Dentro destas condições da existência, onde muitos veem um corpo morto, há uma vida que se forja e produz muitos e novos sentidos para existir. Nesta cena, uma política de saúde deve ser produzida no encontro entre trabalhadores e usuários, onde ambos mostram-se disponíveis a serem afetados e a construírem um projeto terapêutico conjuntamente. Esta é uma aposta de um determinado jeito de se produzir. É assimque o cuidado em saúde, focado no usuário e em toda sua multiplicidade de vivencias, alargando os saberes já há muito estruturados. Aqui há uma tensão evidente e um movimento por parte dos trabalhadores que não é simples e fácil, pois é uma passagem que coloca os conhecimentos já existentes em suspensão para, no encontro com os usuários, construir novas práticas de cuidado em saúde. Um olhar atento percebe que essa existência pode e produz redes que costuram sentidos. Ao final, é possível considerar que o usuário se vincula a rede formal, entretanto, produz redes vivas pautadas em suas necessidades e problemas. Especificamente com Lóris, o que a agencia são seus desejos. Na sua imobilidade ela produz mobilidade e é um dispositivo de reflexão e transformação para as pessoas com quem se relaciona.