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A Extensão Popular como prática transformadora da formação em saúde, onde aprendizados significativos ultrapassam a sala de aula: um relato de experiência
Última alteração: 2015-11-02
Resumo
As ações de Extensão pela Educação Popular têm agregado potentes sentidos como práticas transformadoras da formação em saúde em todo o país. Nesse trabalho, apresentaremos alguns aprendizados significativos nesse campo a partir de um relato de experiência construído em primeira pessoa, e protagonizado pela autora principal, sob orientação do coautor. Pensando sobre a minha trajetória acadêmica, percebo que, muito antes de escolher em quê iria me formar, sabia que queria fazer algo diferente. Enxergava que a realidade do mundo não me agradava e que parte da responsabilidade era minha. Para conseguir mudar o mundo, precisava primeiro mudar a mim. No entanto, a inércia me fez encalhar nas minhas inquietações e no desejo de mudança. Quando ingressei na universidade para cursar Nutrição, conheci, através de uma professora do Departamento de Nutrição, a proposta do Programa “Práticas Integrais de Promoção da Saúde e Nutrição na Atenção Básica” - PINAB. Vi então a oportunidade que esperava há tempos. Percebi que me inserir em uma comunidade era a oportunidade de conhecer pessoas que vivem em circunstâncias diferentes da minha, ultrapassar os muros que me cercavam e compreender a vida para além da minha realidade social. Através dessa vivência e das experiências que venho adquirindo, muitas coisas mudaram em mim, inclusive minha forma de pensar e ver o mundo. Mudei, também, a minha forma de me relacionar com as pessoas, me despindo de preconceitos e compreendendo o sentido de princípios como a amorosidade. Meu primeiro ano no Programa não foi fácil, ao longo do trabalho que desenvolvia junto ao grupo que atuava em uma Escola Municipal, abordando o tema da participação popular com crianças. Utilizávamos dinâmicas que contribuíam na discussão sobre as responsabilidades que possuem frente a seus direitos e deveres. No entanto, nossa pouca experiência e dificuldade em trabalhar tais temas com crianças, assim como os problemas de horários na escola que impediam nossas atividades, foram nos desmotivando. Além disso, após algumas reflexões, pude perceber que o que fazíamos era preponderantemente transmissão de conhecimento de forma lúdica e não um processo pedagógico com abordagens facilitadoras da visão crítica, do protagonismo dos sujeitos e da transformação social. Com isso, era recorrente a vontade de desistir e jogar tudo para cima. Parecia não haver amor ou sentido no que eu fazia; até que, no último dia de atividade do ano, em uma gincana sobre o tema, algumas crianças me surpreenderam e me fizeram ficar apaixonada por aqueles rostinhos sorridentes e espertos que lembravam tudo o que tínhamos conversado o ano inteiro. Durante todo aquele ano, não entendi bem porque eu continuei no Programa, mas depois de ver aqueles sorrisos, soube que minha vontade era não largar mais aquela comunidade. Após dois anos de vivências, pude participar da construção da Horta Comunitária na Boa Esperança (comunidade de atuação do PINAB). Foi nesse espaço que o processo dialógico e o compartilhar de saberes se tornou mais evidente para mim. Aprendemos todos juntos (estudantes, docentes, moradores da comunidade, trabalhadores de saúde locais) todo o processo prático de construção da horta, as diferentes formas de se utilizar cada planta medicinal, buscando também proteger e preservar a nascente do Rio às margens do qual a Horta foi construída, compreendendo também o porquê da quantidade de lixo próximo àquele espaço. Percebemos que, mais do que uma simples placa de “Não jogue lixo aqui”, era necessário buscar de forma coletiva os meios para que a coleta fosse apropriada, e que melhor do que “fazermos o certo” era “fazermos juntos”. Um dos momentos ímpares vivenciados na Horta Popular Boa Esperança (assim nomeada por todos) foi uma oficina de produção de “lambedor”, um medicamento popular e fitoterápico, em que uma moradora da comunidade ensinou a adultos, crianças, extensionistas, médico, agentes comunitários de saúde e residentes da Unidade de Saúde da Família que abrange o território, como fabricar um xarope caseiro com as plantas medicinais cultivadas no próprio espaço da Horta. O diálogo entre o médico e a moradora sobre os benefícios das plantas medicinais consistiu na concretização do compartilhamento de saberes e experiências, onde o científico e o popular se encontraram e percebem que são distintos na linguagem, mas têm ambos o mesmo potencial e importância na construção de processos de melhoria da vida das pessoas. No decorrer de nossas idas e vindas, das dificuldades e desafios que encontramos ao longo do processo de trabalho de sensibilização e mobilização da população na construção da Horta, uma questão que sempre provocou nossa reflexão foi a inconstante participação popular em algumas das frentes de ação que buscamos impulsionar junto a comunidade. Dentro do que conseguimos constatar, percebemos que muitas questões são mais problemáticas globais que especificamente locais. Algumas delas relativas ao tímido sentimento de pertencimento ao território em que se vive. Para muitos comunitários, é ainda tímido o sentimento de que se pode fazer mais e de que se pode modificar a realidade ao nosso redor. É notável, quanto a isso, que nas comunidades em que se atua os reflexos dos muitos anos de promessas não cumpridas por alguns mandatários públicos e políticos forjaram corações calejados e endurecidos pelas mentiras e trapaças eleitoreiras, dificultando a mobilização que tentamos executar. É comum escutar de algumas pessoas do território perguntas como: “O que vocês estão ganhando com isso?”. Ao parar para refletir sobre tal questionamento, penso que a questão deveria ser “o que nos motiva a fazer isto?”. E se me pergunto isso, sem dúvidas posso responder utilizando uma fala de São Paulo, em sua Carta aos Romanos: “Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos”. Da mesma forma, reitera Paulo Freire que nós, seres humanos, não estamos no mundo para a ele nos adaptar, mas para transformá-lo. Para tanto, é preciso “fugir” da nossa zona de conforto e buscar meios de modificar o que nos incomoda, o que acreditamos não estar coerente do ponto de vista humanístico. Portanto, em minha visão, não é preciso ganhar nada em troca para isso, apenas o sentimento de contribuir para a construção de um mundo melhor. Isso não se faz apenas sentado em uma cadeira, dentro de casa ou em uma sala de aula embora seja importante também, mas se faz, necessariamente, com uma inserção radical no mundo. Por um mergulho crítico, pró-ativo e participativo na realidade social, compreendendo as relações ali construídas e buscando estratégias para a problematização e a sua transformação. Foi devido ao sentimento de que podemos fazer mais que me inscrevi no PINAB nas primeiras semanas de meu ingresso na Universidade. Continuo ainda hoje na Extensão Popular, estando mais presente e ativa nesse espaço do que propriamente no curso de Nutrição, em seus espaços tradicionais. Hoje tenho a plena certeza de que os melhores e maiores aprendizados adquiridos não foram dentro da sala de aula, mas principalmente se deram fora dela. Percebi que nossa formação não começa quando entramos na Academia e não se encerra quando saímos. Muito pelo contrário, nossa formação começa quando ultrapassamos os muros que nos prendem e, assim, nos deparamos com a realidade, e nessa nos inserimos de maneira compromissada, permanente, regular e crítica, onde não apenas podemos observar e ver processos e pessoas, mas conhecer, interagir e protagonizar, em conjunto, uma construção compartilhada de saberes, lutas e trabalhos sociais.
Palavras-chave
Participação Social; Relações Comunidade-Instituição; Promoção da Saúde