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Percepção de profissionais de saúde sobre os presos de penitenciárias de regime fechado localizadas em Cuiabá - Mato Grosso
Última alteração: 2015-11-23
Resumo
O presente relato de pesquisa parte da perspectiva de profissionais de saúde atuantes nos serviços de saúde internos a penitenciárias localizadas em Cuiabá/MT, sobre a população atendida – os presos. Ressalta-se que estes são sujeitos em situação de confinamento, no entanto, cidadãos que mantém direito garantido constitucionalmente de acesso à atenção à saúde. Trata-se de percepções, diante das quais procedemos a uma tipificação dos presos e que apresentaremos neste trabalho. As tipificações são provenientes das interações sociais na vida cotidiana, em que são estabelecidas generalizações, com utilidade prática que facilitam o pensamento e as ações. Diante de uma construção compartilhada socialmente, cotidianamente sedimentada por um acervo de conhecimentos prévios, os profissionais em seu trabalho empreendem uma classificação baseada em ideias generalizantes que circulam na sociedade mais ampla na qual se inserem, sintetizando experiências pessoais e alheias. Em um processo dinâmico tal classificação é elaborada e reelaborada no dia a dia pelas interações heterogêneas, pelas quais reúnem aspectos comuns numa só ideia, que as fixa e define, mas tais generalizações são refeitas permanentemente. Nesse sentido, parece útil a compreensão acerca da percepção, fundada na experiência, ou seja, baseada nas interpretações que transcorrem no cotidiano, que não se limita à prática profissional, uma vez que, envolve também valores dominantes e circulantes na sociedade. Trata-se de um recorte de estudo qualitativo mais amplo, inspirado em pressupostos da fenomenologia de Alfred Schutz, o qual compôs um banco de dados do material empírico advindo de entrevistas com 25 profissionais de saúde, fotos, diário de campo; coletados ao longo de 10 meses de trabalho de campo em três penitenciárias de regime fechado localizadas em Cuiabá/MT. Este banco de dados foi consultado para a produção dos dados aqui descritos. Assim, baseados nos relatos dos profissionais de saúde identificamos uma classificação subjacente dos presos como: 1)“instrumento de trabalho”, entendido como objeto sobre o qual incide a ação do trabalhador, no caso, profissionais de saúde aos quais cabe o cuidado daquela população, aplicando seus conhecimentos e práticas em corpos que manifestam desajustes orgânico-corporais em um ambiente de privação de liberdade vigiando para que a não atenção não venha compor a punição; 2) “seres humanos”- pressupõe um cuidado digno e ético, àqueles que incorreram erros, mas talvez por isso mesmo, humano como todos; 3) “paciente/delinqüente” - caracterizado pelo olhar neutro do profissional como alguém a ser cuidado como qualquer outra pessoa (paciente) e que se encontra em cumprimento de pena, porém sem ser julgado pela infração cometida o que já foi feito pelos órgãos da Justiça; 4) “vítimas das desigualdades sociais”- interpretados como sujeitos que não tiveram oportunidades sociais, tais como: de estudo, habitação, saúde, lazer, restando talvez, a alternativa de entrar para o mundo do crime, embutindo ainda, a ideia de que partes dos infratores da lei são provenientes da população socialmente desfavorecida, podendo comportar uma associação equivocada entre marginalização e pobreza. Identificamos, também, como critério classificatório graus de periculosidade dos presos os quais são informados: a) “por valores morais”-responsáveis pela manutenção da ordem social que, neste caso, as leis formuladas a partir dos conceitos éticos e morais são ignoradas, em que se destacam os delitos sexuais (atentado violento ao pudor, estupro, pedofilia); b) “pela liderança e capacidade de planejar fugas”- neste caso são citados com alto grau de periculosidade, talvez pelo poder, astúcia, influência e liderança que exerceram anteriormente à reclusão e que transpõem à instituição penitenciária, podendo causar possíveis desordens como motins e rebeliões. Tornam-se dessa forma, uma presença de grande ameaça para a segurança, vigilância e disciplina e, por conseguinte, para os profissionais de saúde e a toda penitenciária tanto para o desempenho das atividades como para a vida. Destaca-se que internamente, tais presos podem ser identificados pelo local de residência, ou seja, pelas alas especificas; c) “por antecedentes de delito de grande comoção e repercussão midiática”- presos envolvidos em crimes sexuais e chacinas estariam neste grupo de classificação, especialmente pelas situações e práticas com certo requinte de crueldade, por vezes sem motivação aparente e com grande repercussão nos meios de comunicação. Em todos os casos, no entanto, observamos que os profissionais se esforçam em evitar que tais classificações influenciem o cuidado e, para tanto, empregam estratégias cotidianas como preferir não saber do delito cometido, pois acreditam que saber pode comprometer o cuidado ofertado. Há uma tentativa de manutenção da neutralidade, não emitindo juízos para não despertarem sentimentos como medo, raiva, que de certa forma poderia alterar o comportamento e a conduta frente aos presos. Por outro lado, há algumas situações que despertam a curiosidade em saber do delito cometido ou ficam conhecendo-o por acaso porque tais informações circulam pela unidade prisional via outros profissionais ou mesmo pela mídia. E, há duas situações em que os profissionais fazem questão de saber do delito: ao atender ou trabalhar no mesmo local (no caso dos presos que trabalham em diferentes setores da penitenciária, inclusive na enfermaria – são chamadas “celas livres” que foram selecionados e tem remissão de pena proporcionalmente aos dias trabalhados) e justificam por questões de segurança pelo fato de haver muitas mulheres como profissionais na área de saúde. A outra situação deve-se à categoria profissional que para atender precisa saber por que o preso está ali. Assim, a percepção dos profissionais acerca dos presos, oscila entre classificações diversas e às vezes não muito claras porque também embutem a compreensão repleta de imprecisão sobre o que leva as pessoas a cometerem delitos como algo inato ou construído socialmente. A este respeito nota-se outra classificação em que se distinguem aqueles sujeitos que quase acidentalmente cometeram delito, vistos como recuperáveis e, então, com potencial para ressocialização que denominaram “reeducando mesmo” (embora institucionalmente todos assim sejam chamados); daqueles outros que parece terem se envolvido ou optado pela vida do crime quase como profissão (aqui notamos alusão a uma herança moral consanguínea e/ou de convivência com o mundo do crime) não apresentando potencial para recuperação, que alguns designaram de “preso-preso,” como sujeito que voltará à criminalidade. É oportuno lembrar que as reincidências atestam tal percepção. Conclui-se que a classificação pauta-se em grande parte pela periculosidade, pelo tipo de delito cometido e pela motivação ao crime oscilando no seu caráter físico e moral. Dessa forma, nota-se o esforço dos profissionais de saúde em desenvolver estratégias de lidar com a diversidade sociocultural da população em privação de liberdade a qual tem o direito à saúde formalmente garantida pelo Estado por meio do princípio da universalidade preconizada pelo Sistema Único de Saúde. Assim, busca prover o cuidado equânime reconhecendo a diferença desta população e das suas necessidades, cujo contexto prisional imprime peculiaridades, mas que não justifica desigualdade de direitos.