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Mulheres vulneráveis, em redes, por vezes, frágeis demais
Última alteração: 2015-11-24
Resumo
A violência sexual, paulatinamente, vem sendo reconhecida não só como uma questão de saúde pública, mas também como de violação de direitos humanos. É um fenômeno complexo, multicausal, subnotificado, que interfere tanto nos sujeitos quanto na coletividade. Produz uma série de agravos em saúde, sequelas orgânicas e/ou psíquicas, assim como traz importantes repercussões sociais, requerendo do Estado a formulação e implementação de políticas públicas, da mesma maneira que a organização de uma rede de serviços voltados a seu enfrentamento – sistematização de rede de cuidados e assistência.Embora as políticas nacionais de saúde incorporem a violência sexual contra a mulher como sendo uma de suas prioridades, as pesquisas evidenciam que ainda há um longo caminho a ser percorrido, pois, à violência é marcada pela invisibilidade, existindo diversos mecanismos para mascará-la e, inclusive, calar suas vítimas. Podemos dizer que, em na sociedade, as mulheres são, historicamente, sujeitos vulneráveis, que estão constantemente expostas às mais diversas formas de violência. E, por isso, várias ações, especialmente a partir dos anos 90, foram realizadas na tentativa de se voltar esforços para seu enfrentamento e prevenção. Contudo, atenção às mulheres em situação de violência, em especial sexual, ainda se dá de maneira fragmentada e pontual. Enquanto alguns serviços se organizam em redes temáticas, lançando mão de estratégias em busca de ampliação da resolubilidade e a integralidade da atenção, outros permanecem fragilizados, desarticulados dos demais serviços, com ações fragmentadas e, por conseguinte, ineficientes. Por isso, nosso trabalho pretende discutir e ratificar a necessidade de se delimitar e sistematizar a rede de cuidados e assistência, que são oferecidas às mulheres que são violentadas sexualmente. Propomos a reflexão a partir de experiências de trabalho realizadas em unidades de saúde, do Sistema Único de Saúde, denominadas “portas de entrada”, “unidades de referência”. A partir delas, evidencia-se o quanto a sistematização em rede temática é condição imprescindível para a promoção de cuidados em saúde destas mulheres. A primeira experiência de trabalho se deu numa unidade materno-infantil, no município do Rio de Janeiro, como profissional psi. Nesta maternidade, ao longo dos anos, foi criado um fluxo de trabalho não só dentro dos muros hospitalares, mas também em todo o território. Se, de um lado, tem uma equipe mínima, treinada e capacitada para oferecer um atendimento humanizado às mulheres que davam entrada na unidade, por conta das violências sofridas, de outro, tinham vários atores que compunham a rede intersetorial de atenção e cuidados. A verdadeira consolidação de uma unidade de referência só se deu quando houve o entendimento dos diversos profissionais que o trabalho com violência, em rede temática, convoca parcerias diversas nos serviços e fora deles, ou seja, no seu território. Para isso, se criou como estratégia o estabelecimento de reuniões bimestrais com os vários setores, profissionais e segmentos sociais disponíveis naquele território, para que, juntos, pudéssemos discutir o trabalho. Apesar de nos depararmos com as várias fragilidades do sistema, nosso trabalho caminhava na direção de tentar ultrapassar as barreiras e eventuais lacunas. Depois de mais de uma década de trabalho em unidades voltadas à saúde da mulher, unidades essas que tomam a mulher como foco e objeto de intervenção, iniciamos um trabalho com as mulheres vítimas, num hospital universitário. O Hospital Universitário Antônio Pedro, da Universidade Federal Fluminense, é um dispositivo de saúde de alta complexidade, referência para chamada região Metropolitana II, atendendo assim uma população estimada de cerca de dois milhões de habitantes, oriundos de diversos municípios contíguos à cidade de Niterói, onde está localizado. Embora localizado no centro de Niterói, de ser uma unidade de acesso fácil e de ser uma das unidades de referência da rede de saúde de Niterói para atendimento às mulheres vítimas, a entrada na unidade de mulheres violentadas é ínfima. Em 2015, apenas cerca de 10 mulheres compareceram a unidade para iniciar o protocolo de assistência. Diante desses números, apresentou-se a necessidade de rever fluxos e processos, delimitar e sistematizar a rede de atenção e cuidados. Mas, como inserir um hospital repleto de doenças raras, tratamentos custosos, longos e invasivos, numa rede temática de violência? Que tessitura se faz necessária? Apesar dos serviços de saúde serem estratégicos, no que diz respeito à assistência integral, o que se faz mais evidente é que nessa unidade, a violência contra a mulher, mesmo que sexual, muitas vezes ainda permanece invisível. O hospital universitário conta com a presença, já a alguns anos, de um projeto extensionista intitulado SOS Mulher, que tem como objetivo assistir as mulheres vítimas de violência sexual e doméstica. Mas, o que hoje vemos, é que o fluxo de funcionamento da assistência, quer dentro da unidade quer no território, está desarticulado, produzindo, consequentemente, iatrogenias. Chamado de rede de atenção a uma forma de organização entre instituições, em parcerias. Está para além dos fluxos simplesmente descritos e publicizados. Como conjunto de serviços e ações, articulados politicamente em níveis de complexidade, uma rede preza pela autonomia dos setores envolvidos. Mas, estruturar uma rede temática, como a de atenção às mulheres em situação de violência sexual, é um processo contínuo e permanente de articulação e comprometimento entre os setores envolvidos. Demanda ações que vão desde o diagnóstico dos serviços disponíveis no território até o seu monitoramento constante e (re)avaliação. Temos que ter clareza de que não podemos tratar a violência como um fato isolado da vida dos sujeitos, como algo que se refere ao campo privado e que demande apenas intervenção de um saber biomédico desarticulado do contexto biopsicossocial. Trabalhar com violência sexual requer, antes de tudo, uma rede articulada de serviços no território, que evitem a peregrinação das vítimas por vários (des)caminhos. Assim, torna-se necessário dar visibilidade e voz às violências sofridas pelas mulheres, desnaturalizando opressões e agressões que estas sofrem e tratando-as como problemas sociais e de saúde pública. Para tanto, é preciso analisar e dar a devida importância ao contexto e relações em que essas mulheres se inserem e para além dos agravos físicos cujo cuidado centra-se no aspecto biomédico, entender o cuidado como interdisciplinar e intersetorial. Desta forma, é possível além de tratar, cuidar e criar manejos para o enfrentamento da violência como um fenômeno que acomete não só uma mulher, mas muitas e todos os dias.
Palavras-chave
violência sexual; rede; assistência