Rede Unida, 12º Congresso Internacional da Rede Unida

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A alma do cuidar no Amazonas: A produção de vida e a vida inventada pelo mito
Gabriela Braga Bordon

Última alteração: 2015-11-27

Resumo


Aqui relato uma experiência rica de viver o SUS do estado do Amazonas através do projeto VER-SUS (Vivências e estágios na realidade do Sistema Único de Saúde) que é viabilizado pelo Ministério da Saúde em parceria com a Rede Unida. A experiência de se deslocar em direção ao novo na curiosidade de desvendar as inúmeras formas de produzir vida do meu país. Sou filha de um Brasil de muitos Brasis, de muitas histórias, muitas culturas, muitas pessoas, muita riqueza. Sou nascida e criada na cidade de São Paulo, estudante, graduanda em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo. Acredito que nosso saber tem que ser ampliado às especificidades e peculiaridades do território brasileiro para nos afirmarmos como sanitaristas. O projeto VER-SUS já me proporcionou  imergir  no meu lócus de vida, a capital-metrópole-caótica São Paulo e outras cidades do estado, mas sair da minha zona de conforto me proporcionou encontros de muito afeto com vidas e realidades vivas. “La do alto, o viajante noturno tem a sensação de que um rio de histórias flui na cidade invisível.” (HATOUM, 2008). Sobrevoar o amazonas já proporciona um presságio da imensidão do que esta por vir, mas só aos olhos; quando se esta em solo ou em água em contato com as vidas diversas se tem a dimensão real e encantada da diversidade que compõe esse lugar. São as pessoas, as paisagens, a natureza bruta que invade o cotidiano, as narrativas, os movimentos, a vida que corre pelos rios. Me deparei com a alma do cuidar, desde a acolhida das boas vindas ao afeto no compartilhamento dos dias com mais oito estudantes da área da saúde do estado do Amazonas e profissionais e  usuários do município de Presidente Figueiredo. A refeição farta que me recebeu com Tambaqui e farinha do Uarini, me alimentou da fome das horas de viagem e alimentou minha alma com o calor e ternura daquelas pessoas. O prato que alimenta o corpo, ali alimenta e perpetua a cultura e ligação com as raízes daquele povo. Nos dez dias que passei no Amazonas me alimentei da história do lugar e de realidades ricas. A valorização e ligação forte desses indivíduos com suas origens além de serem externadas através do alimento também se concretizam na narrativa. Choquei-me quando uma das estudantes e companheira de vivência não quis se banhar por estar menstruada e temer o boto, me referindo à MELLO, 2013 “A lenda inventada vira vida. E nunca mais se acaba”. Paulistana que sou e crescida cercada do cinza me choquei e me encantei pela pureza e singeleza e mais que isso pela essência do que ali estava colocado. Se identificar com a essência de sua terra e valorizar as suas origens de forma cotidiana traz um reconhecimento mais fácil aos seus pares, por aqueles que compartilham o território com você. Vê-se na narrativa e ação tanto dos estudantes que participaram do VER-SUS como dos profissionais daquele município que a essência dos atos de saúde que já produziu, produz e produzirá é o reconhecimento das necessidades daquela população. São condições adversas e muito peculiares que tornam o ato de produzir saúde um desafio no Amazonas, mas estes parecem serem movidos por se reconhecer no outro. “[...] um dos pontos nevrálgicos dos sistemas de saúde localiza-se na micropolítica dos processos de trabalho, no terreno da conformação tecnológica da produção dos atos de saúde, nos tipos de profissionais que os praticam, nos saberes que incorporam, e no modo como representam o processo saúde doença.” (MERHY,2014) Profissionais trabalhando em estruturas muito precarizadas narram o amor e reconhecimento da necessidade do outro como disparadores da sua labuta. O olhar para o outro e enxergar talvez não os mesmos caminhos e realidades mas a mesma origem incorpora no profissional e naqueles futuros profissionais um saber que não é técnico mas que se traduz na alma do cuidar. Não são apenas os profissionais nativos que apresentam esse sentimento e ação. Conheci Stella Nery, uma assistente social de Fortaleza, CE que esta há 17 anos em Balbina, a zona rural de Presidente Figueiredo. Um lugar esquecido pelas autoridades políticas, as ruas são tristes e o clima é melancólico, essa atmosfera expressa um pouco da guerra que se passou durante a construção da Usina de Balbina no período da ditadura. Stella coordena o projeto caminhos da cidadania, e tenta resgatar e manter aceso no coração de crianças e jovens a alegria para que possam seguir na vida. Enfrentam um grave problema de drogas com os jovens e tentam encontrar mesmo na precariedade e esquecimento do lugar formas de produzir vida. Fica claro que o que move essa mulher é o amor e comprometimento com aquela população. A população tem um encanto que poderia ser narrado em uma lenda, lenda essa que se tornou vida aos meus olhos. Estar em contato com a natureza ainda tão bruta, com a cultura ali tão preservada te envolve e te desperta para um novo agir como individuo e como profissional da saúde, te mostra a fé no sentido mais singelo, esse encanto tem o poder de capturar muitos, sejam os nativos, sejam os forasteiros. Fui capturada pelo encanto, pelo lugar, pelas pessoas e por essa vivência, vi mais uma vez o poder transformador do projeto VER-SUS. Com o projeto esses estudantes e professores estão produzindo um banzeiro, essa palavra do vocabulário dos amazonenses significa uma sucessão de ondas no rio que são provocadas por algo e neste caso são provocadas pela alma do cuidar, que  estes têm em si e que querem compartilhar com os demais. Sofri por partir e ter que me despedir daquele lugar e de pessoas com tanta alma e afeto, mas voltei transformada, alimentada por um pedaço da história do meu país, pelo carinho e fé daquelas pessoas. Avancei um pouco mais no meu caminho para me tornar sanitarista. Trouxe comigo o poder de disparar um banzeiro, mesmo que entre tanto concreto. Precisamos ter a dimensão do poder dos nossos sentimentos na produção de saúde, precisamos colocar alma e afeto nos nossos atos.

Palavras-chave


(VER-SUS; Saúde; Vida; Educação em Saúde; Amazonas; Lenda;

Referências


HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. 1ª Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 148 Páginas.

MELLO, Thiago de. Amazonas: no coração da floresta encantada. 2ª edição. São Paulo: Cosac Naify, 2007. 80 Páginas

MERHY, Emerson Elias. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 4ª edição. São Paulo: Hucitec, 2014. 187 Páginas