Rede Unida, 12º Congresso Internacional da Rede Unida

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Narrando as afecções do campo: o encontro com a parteira ridente
José Guilherme Wady Santos, Ana Lúcia Santos da Silva, Emerson Elias merhy

Última alteração: 2015-11-23

Resumo


Este trabalho é parte do projeto “Observatório Nacional da Produção de Cuidado em diferentes modalidades à luz do processo de implantação das Redes Temáticas de Atenção à Saúde no Sistema Único de Saúde: Avalia quem pede, quem faz e quem usa”, tendo o entendimento de que o trabalho em saúde faz parte de uma micropolítica. Propõe processos avaliativos nas redes de saúde, com foco no modo como o cuidado é produzido. Olhando para a Rede Cegonha-RC (PA) vimos considerando que a pesquisa no campo da saúde só ocorre efetivamente quando o conjunto dos protagonistas do agir cotidiano no mundo do trabalho incorpora-se aos processos avaliativos. Pretendemos narrar as afecções suscitadas a partir de encontros com uma das parteiras de um grupo delas, existente na cidade de Bujarú (PA), município que fica acerca de 72km da capital do estado (Belém), e que tem sua prática inscrita não apenas no que estamos considerando como um “dentro” e “fora” na organização da rede de atenção em saúde daquele lugar, mas também na sua luta no movimento de mulheres do campo e da cidade. Desse modo, estamos traçando o campo a partir de nossas incursões na respectiva cidade, mais precisamente na comunidade de Valverde, lugar onde habita aquela pele que nos afetou e que afetamos, já que nos constituímos pesquisadores in-mundo. Apostando na possibilidade de a pesquisa ir construindo-se no próprio processo de acontecimento, modificando e atuando, abrindo espaço para a experiência, para o exercício de produzir um conhecimento interessado, implicado na transformação de práticas e saberes. Trata-se de sustentar um exercício de desaprendizagem do já sabido e de desistitucionalização do prescrito, na invasão e na vazão do sujeito/objeto implicado ao sujeito epistêmico. Um movimento permanente de atravessamentos nos territórios que se formam, deformam e se transformam durante os encontros. Em um desses encontros, chegamos até a “parteira ridente” depois de termos percorrido um certo “longe muito longe”, em um ramal da PA140, e a encontramos junto a um grupo de agricultores, para a eleição da nova diretoria da cooperativa. E lá estava ela, como uma das integrantes da chapa que foi proclamada eleita para o novo mandato, e que tinha a sua filha como a presidente da mesma. Naquele momento, nós que a víamos como parteira, vazamos para o acontecimento que ali apresentava-se e nos deixamos invadir por ele, pelas diversas falas em defesa dos interesses daquela comunidade, que a cada momento ecoavam em uma das salas de aula da escola onde estavam reunidos. Após, a acompanhamos até sua casa e, já no caminho, ela foi nos falando de sua história de luta e de cuidadora, percorrendo um caminho entrecortado de árvores frondosas e igarapés cujas águas apresentavam-se cobertas de vitórias-régia, como se fossem um tapete a saudar os visitantes. São muitas as afecções do campo em que estamos imersos, e o encontro com a parteira ridente, sem dúvidas, têm reverberado até hoje. Ela que, sem “nos preparar” para o encontro, improvisou um instrumento musical, conhecido na região como paneiro, geralmente utilizado nas feiras para o transporte de legumes e frutas; sendo o açaí uma das mais comuns. De posse deste, agora, instrumento, nos mostrou como cuida das parturientes que se encontram tristes, “pra baixo”, e que a ordem médica talvez as identificasse como portadoras de depressão. Em seu afã de produzir vida e cuidado, nos sinalizou, em ato (por meio do seu ato), que o encontro é da ordem do acontecimento. Mas isso nós sabíamos!! Não bastar saber! E nisso ela é entendida! Entendida na arte de cuidar, e de “acontecimentalizar”. Ao mesmo tempo em que nós estávamos desejando conhecer o seu fazer, talvez estivéssemos idealizando um modo dela dizer de si e de sua prática. Em algum momento poderia surgir uma cantoria, pois em nosso primeiro encontro, ela apresentou-se como a “cantora” da turma de parteiras, mas não sabíamos de onde e nem quando. Assim, ficamos atentos à sua narrativa, interessados naquela que é tida como parteira, para nós, ridente, da comunidade Valverde. De sorriso largo e de humor contagiante, é atravessada pelas canções e composições que falam da afirmação da mulher em sociedade, suas conquistas e tudo mais. “Quando dei fé” ela já estava em ato, com o paneiro nas mãos, como se fosse pandeiro, cantando e falando com o corpo, do corpo. Por um lado, foi muito bom que ela não tenha nos dado tempo para preparar a luz, a câmera e a ação do fragmento audiovisual aqui pinçado, pois estávamos por demais atentos ao tempo presente, e aquela tarde ensolarada foi um presente! Queremos ofertar o que nos pegou, as nossas pegadas... Desse dia, desse campo, nos coube fisgar um pouquinho desse acontecimento musical e autoral: “Mulher tu sai da cozinha, vamo junto se organizar / Mulher, mulher tu tem valor, não deixa te discriminar / Se o homem chega lá, a mulher também já chegou. - Quando dei fé ela que tava doente, já tava dançando também...”. São encontros assim que têm produzido em nós um modo diferente de olhar para a rede de atenção em suas mais diversas possibilidades de produzir acessos e barreiras. Percebemos que muito embora as parteiras ocupem um “dentro/fora” na rede de atenção, estas não passam desapercebidas do que é instituído na RC com a sua política de visibilidade e invisibilidade, e seguem tecendo novas possibilidades de produção do cuidado, deslocando-se e produzindo deslocamentos dentro e fora da rede. A lógica do acesso ao cuidado na região, que é caracterizada por um vazio assistencial, mas não existencial, também passa pela possibilidade desses enfrentamentos, inclusive, de valoração do que é ser parteira e como isso vai se produzindo. O “longe muito longe”, na perspectiva da parteira ridente e de sua existência, bem como da existência das mulheres grávidas das quais ela cuida, se reduz cada vez mais para um “longe muito perto”, cheio de produção de cuidado e de vida. A organização da RC tem sido pensada, talvez, a certa distância das práticas desenvolvidas por parteiras “ridentes”, e estas, por sua vez, independentemente de serem ou não reconhecidas institucionalmente, vêm tecendo uma potente rede de atenção na produção do cuidado às mulheres, que extrapola o sistema; e que a conexão entre essas redes é algo que urge.

Palavras-chave


Produção do Cuidado; Redes Temáticas de Atenção; Parteiras; Rede Cegonha

Referências


ABRAHÃO, A.L.; MERHY, E.E.; CHAGAS, M.S.; GOMES, M.P.C.; SILVA, E.; VIANNA, L. O pesquisador in-mundo e o processo de outas formas de investigação em saúde. Lugar Comum (UFRJ), v 39, p. 133-144, 2013.

GOMES, M.P.C.; MERHY, E.E. (Org.). Pesquisador IN-MUNDO: Um estudo da produção do acesso e barreira em saúde mental. Porto Alegre: Editora Rede Unida, 2014.

ROLNIK, S. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2007.