Rede Unida, Encontro Regional Norte 2015

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Nossos achados do campo: o encontro com uma parteira ridente
Ana Lúcia Santos da Silva, José Guilherme Wady Santos, Emerson Elias Merhy

Última alteração: 2016-05-30

Resumo


Este trabalho é parte do projeto “Observatório Nacional da Produção de Cuidado em diferentes modalidades à luz do processo de implantação das Redes Temáticas de Atenção à Saúde no Sistema Único de Saúde: Avalia quem pede, quem faz e quem usa”, tendo o entendimento de que o trabalho em saúde faz parte de uma micropolítica. Propõe processos avaliativos nas Redes de Atenção Temáticas, com foco no modo como o cuidado é produzido. Olhando para a Rede Cegonha (RC), vimos considerando que a pesquisa no campo da saúde só ocorre efetivamente quando o conjunto dos protagonistas do agir cotidiano no mundo do trabalho se incorpora aos processos avaliativos.

Desse modo, pretendemos narrar as afecções suscitadas a partir de encontros com uma das parteiras de um grupo de trinta e duas, que se reunia na Unidade Básica de Bujarú (PA), município que fica a cerca de 72km da capital Belém, e que têm sua prática inscrita não apenas no que estamos considerando como um “dentro” e “fora” na organização da rede de atenção em saúde daquele lugar. Consideramos a Portaria nº 1.459, de 24 de junho de 2011, que institui a Rede Cegonha (RC) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), e que trata explicitamente do financiamento do seu componente pré-natal (Artigo 10) e nele inclui (alínea “b”), também de forma explícita, o fornecimento de kits para “parteiras tradicionais”, como modo de inseri-las na rede de atenção e cuidado à mulher grávida, particularmente naquelas regiões marcadas por um vazio assistencial. No entanto, para além disso, e até mais importante, também partimos da consideração de que a prática do partejar poderia ser uma prática, instituída ou não, com forte inserção na nossa região, que apresenta vazios assistenciais bastante significativos. Assim, a entrada em campo se deu a partir do rastreamento de parteiras na Região Metropolitana de Belém e outras próximas, o que nos levou àquele grupo.

Trata-se de uma pesquisa interferência que se realiza a partir de movimentos cartográficos e dos encontros dele decorridos, olhando para as redes de conexões existenciais que vão se conectando na produção do cuidado e provocando ondas de interferências, em nós, no serviço e nos usuários. A aposta é trazer a experiência e o acontecimento como destaques, no exercício de produzir um conhecimento interessado, implicado na transformação de saberes e práticas. Uma aposta que se sustenta no encontro de sujeitos, em exercício de alteridade, e suas implicações para a produção do cuidado.

Essa experiência na RC traz um trabalhador, uma usuária, um gestor e/ou, no nosso caso, uma parteira como guia do processo avaliativo. Desse modo, estamos trançando o campo a partir de nossas incursões na respectiva cidade, mais precisamente em uma de suas comunidades, lugar onde habita aquela pele que nos afetou e que afetamos. Apostando na possibilidade de a pesquisa ir se fazendo no próprio processo de acontecimento, modificando e atuando, abrindo espaço para a experiência, para o exercício de produzir um conhecimento implicado na transformação de práticas e saberes. Trata-se de sustentar um exercício de desaprendizagem do já sabido e de desistitucionalização do prescrito, na invasão e na vazão do sujeito/objeto implicado ao sujeito epistêmico. Um movimento permanente de atravessamentos nos territórios que se formam, deforma e se transforma durante os encontros.

Bujarú, a cidade que nos acolheu

Para chegarmos à cidade de Bujarú, percorremos a Rod. BR-316, cerca de 40 minutos até chegarmos à cidade de Santa Izabel e, de lá, seguimos pela PA-140, para mais cerca de 50min até o porto de Inhamgapi, na travessia da balsa e mais 20 minutos chegamos à cidade. São caminhos que seguimos e neles nossos olhos vão percorrendo as 17 comunidades existentes às margens da rodovia, antes de chegarmos no porto da balsa.

Desconhece-se, precisamente, a origem do atual município de Bujarú, localizado na zona fisiográfica Guajarina, na margem esquerda do Rio Guamá. Sabe-se, porém, que o seu território fora habitado, inicialmente, por famílias nordestinas, que ali chegaram atraídas pela fertilidade das terras, para fins agrícolas. Com o aumento gradativo da população, a localidade progrediu e em 1758 já figurava como distrito de São Domingos do Capim. Entretanto, essa situação perdurou até 1938, quando, por ocasião da extinção de sua categoria, passou a integrar a zona do distrito-sede de Capim, onde desmembrou-se em 1943, para construir em unidade autônoma. O topônimo proveio do Rio Bujaru que corta o município, cujo significado indígena é "boca da cobra"1. Com uma área de 1005 km2, tem uma população estimada em cerca de 25 797 habitantes, segundo o último censo do IBGE (2010).

O que se segue a partir daqui são nossos achados e afecções por dentro e por fora da Rede Cegonha. Rede que no estado faz parte do Plano de Ação elaborado e coordenado pela Secretaria Estadual de Saúde do Pará (SESPA) e pelo Conselho de Secretarias Municipais de Saúde do Pará (COSEMS-PA), para os anos de 2011 a 2014. Esse percurso se faz sempre em conexão com a Rede de Parteiras que encontramos dentro e fora da Rede Cegonha. A porta de entrada e de acesso às parteiras, se deu partir do serviço de Atenção Básica do município de Bujarú, e que na atualidade ainda não foi contemplado com a abrangência pretendida pelo Plano de Ação consultado. No entanto, o fato de termos rastreado um grupo de parteiras naquela cidade e região, e termos sabido que as mesmas se reuniam na UBS da cidade nos fez acessar tal rede viva para “iniciarmos o campo”.

De 2014 para cá, algumas mudanças na gestão do setor saúde da cidade impossibilitaram o encontro entre elas e, a partir daí, percorremos outros caminhos, rastreando-as em seus territórios vivos. E nessas andanças, e em um desses encontros, chegamos até àquela a quem estamos chamando de “parteira ridente”, depois de termos percorrido um certo “longe muito longe”, em um ramal da PA-140. Encontramo-la junto a um grupo de agricultores, para a eleição da nova diretoria da cooperativa local. Ela era uma das integrantes da chapa que foi proclamada eleita para o novo mandato, e que tinha a sua filha como a presidente da mesma. Naquele momento, nós que a víamos apenas como parteira, vazamos para o acontecimento que ali se apresentava e nos deixamos invadir por ele, pelas diversas falas em defesa dos interesses daquela comunidade, que a cada momento se faziam ecoar em uma das salas de aula da escola onde estavam reunidos.

Em seguida, a acompanhamos até sua casa e, já no caminho, ela foi nos falando de sua história de luta e de cuidadora, percorrendo um caminho entrecortado de árvores frondosas e igarapés cujas águas se apresentavam cobertas de vitórias régia, como se fossem um tapete a saudar os visitantes. São muitas as afecções do campo em que estamos imersos, e o encontro com a parteira ridente, sem dúvidas, tem reverberado até hoje. Ela que, sem “nos preparar” para o encontro, improvisou um instrumento musical, conhecido na região como paneiro, geralmente utilizado nas feiras para o transporte de legumes e frutas; sendo o açaí uma das mais comuns. De posse deste, agora, “pandeiro”, nos mostrou como cuida das parturientes que se encontram tristes, “pra baixo”, e que a ordem médica talvez as identificasse como portadoras de depressão. Pensamos: é uma parteira ridente, mas também, militante, cuidadora, agricultora e defensora da vida alegre. E sua alegria “carnavalizante” nos contagiou e nos reafirmou o quanto a militância e a governança pelo riso, pela alegria, pode ser anti-protocolar. Foucault (1979) já nos alertou que a história é baixa, que a dispersão é o que existe de mais potente nos arquivos. E essa parteira ridente, parece, de fato, que ri das solenidades do parto! O riso parece ser um dos seus “utensílios” de trabalho de parto, seu “kit parteira” particular, que foi transbordado para além do que está prescrito pelo “kit”. Sua alegria é parte integrante de seus protocolos de afeto, parece levar uma vida aquém das pastas ministeriais, em particular, do Ministério da Saúde, no que diz respeito ao “kit parteira”, pois quando é perguntada se recebeu essa caixa de ferramenta, essa se põe a cantar e contar como parteja.

Em seu afã de produzir vida e cuidado, nos sinalizou, em ato (por meio do seu ato), que o encontro é da ordem do acontecimento. Mas isso nós sabíamos! Não bastar saber! E nisso ela é entendida! Entendida na arte de cuidar, e de “acontecimentalizar”.

Ao mesmo tempo que nós estávamos desejando conhecer o seu fazer, talvez estivéssemos idealizando um modo dela dizer de si e de sua prática. Em algum momento poderia surgir uma cantoria, pois em nosso primeiro encontro, ela se apresentou como a “cantora” da turma de parteiras, mas não sabíamos de onde e nem quando. Assim, ficamos atentos a sua narrativa, interessados naquela que é tida como parteira, para nós, ridente, da comunidade Valverde.

De sorriso largo e de humor contagiante, é atravessada pelas canções e composições que falam da afirmação da mulher em sociedade, suas conquistas e tudo mais. “Quando dei fé” ela já estava em ato, com o paneiro nas mãos, como se fosse pandeiro, cantando e falando com o corpo, do corpo. Por um lado, foi muito bom que ela não tenha nos dado tempo para preparar a luz, a câmera e a ação do fragmento áudio visual aqui pinçado, pois estávamos por demais atentos ao tempo presente, e aquela tarde ensolarada foi um presente!

Queremos ofertar o que nos pegou, as nossas pegadas... Desse dia, desse campo, nos coube fisgar um pouquinho desse acontecimento musical e autoral: Mulher tu sai da cozinha, vamo junto se organizar / Mulher, mulher tu tem valor, não deixa te discriminar / Se o homem chega lá, a mulher também já chegou. - Quando dei fé ela que tava doente, já tava dançando também...É assim que eu faço! Finaliza ela.

São encontros assim que têm produzido em nós um modo diferente de olhar para a rede de atenção instituída como Rede Cegonha, em suas mais diversas possibilidades de produzir acessos e barreiras, reconhecimento e isolamento. Percebemos que muito embora as parteiras ocupem um “dentro/fora” na rede de atenção, estas não passam desapercebidas do que é instituído na Rede Cegonha com a sua política de visibilidade e invisibilidade, e seguem tecendo novas possibilidades de produção do cuidado, se deslocando e produzindo deslocamentos dentro e fora da rede.

A lógica do acesso ao cuidado na região, que é caracterizada por um vazio assistencial, mas não existencial, também passa pela possibilidade desses enfrentamentos, inclusive, de valoração do que é ser parteira e como isso vai se produzindo. O “longe muito longe”, na perspectiva da parteira ridente e de sua existência, bem como da existência das mulheres grávidas das quais ela cuida, se reduz cada vez mais para um “longe muito perto”, cheio de produção de cuidado e de vida. A organização da Rede Cegonha tem sido pensada, talvez, a certa distância das práticas desenvolvidas por parteiras “ridentes”, e estas, por sua vez, independentemente de serem ou não reconhecidas institucionalmente, vêm tecendo uma potente rede de atenção na produção do cuidado às mulheres, que extrapola o sistema; e que a conexão entre essas redes é algo que urge.

Esses achados, e essa parteira ridente, foram um presente. Presente no sentido de oferta de vida de uma pesquisa que percorre os territórios vivos e se produz no encontro, e também, presente, cronologicamente falando, por poder viver hoje esse momento, o encontro com essa gaia parteira e produzir conhecimento militante e ridente na construção permanente do SUS.

1 http://www.bujaru.pa.gov.br/portal1/municipio/historia.asp?iIdMun=100115030.


Palavras-chave


Serviços de Saúde; Saúde da Mulher e da Criança; Parteiras

Referências


ABRAHÃO, A.L.; et al. O pesquisador in-mundo e o processo de outas formas de investigação em saúde. Lugar Comum (UFRJ), v 39, p. 133-144, 2013.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. São Paulo: Graal; 1979.

GOMES, M.P.C.; MERHY, E.E. (Org.). Pesquisador IN-MUNDO: Um estudo da produção do acesso e barreira em saúde mental. Porto Alegre: Editora Rede Unida, 2014.

ROLNIK, S. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2007.