Última alteração: 2016-05-30
Resumo
INTRODUÇÃO
Este texto versa sobre a construção coletiva de uma pesquisa de âmbito nacional executada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e integrante do Observatório de Políticas e o Cuidado em Saúde. A pesquisa é intitulada: Observatório Nacional da Produção de Cuidado em diferentes modalidades à luz do processo de implantação das Redes Temáticas de Atenção à Saúde no Sistema Único de Saúde: Avalia quem pede, quem faz e quem usa, conformando uma Rede de Avaliação Compartilhada (RAC). Trata-se de uma investigação compartilhada, no sentido de produção de trocas e conhecimentos entre diferentes sujeitos como trabalhadores da saúde, usuários, docentes e pesquisadores, constituindo um grupo interessado em trazer para a análise a produção do cuidado que, no campo loco regional do Amazonas tem como foco a Rede Cegonha. Rede temática que é preconizada pelo Ministério da Saúde como uma estratégia e um modelo de atenção que amplia e fortalece a assistência às grávidas e às crianças até o segundo ano de vida (BRASIL, 2011). Com a intencionalidade de trazer as questões amazônicas para o contexto da investigação e considerando que Parteira faz parte da configuração instituída da Rede Cegonha do Estado, pactuou-se com profissionais da Universidade do Estado do Amazonas, da Fiocruz/AM e do SUS local que esta seria uma importante guia para seguirmos com o processo investigativo. Ressalta-se que a Parteira surgiu no contexto das discussões da RAC da Região Norte a partir do recolhimento da narrativa de uma candidata a tutora, à época, do “Curso de Especialização em Formação Integrada Multiprofissional em Educação Permanente em Saúde - EPS em Movimento”, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em convênio com MS, com ênfase na EPS como uma “Política de reconhecimento e cooperação” (CECCIM, FEUERWEKER, 2004). Uma narrativa que expressava o desejo de reconhecimento por parte de parteiras que participaram do Curso de Parteira Tradicional, realizado pela Secretaria Estadual de Saúde, em Convênio com o MS, abria para a possibilidade de ampliação de sentidos e significados dos processos de ensino aprendizagem (CECCIM, FEUERWEKER, 2004), com e entre parteiras da região. Assim, a partir da oferta feita pelo coordenador nacional da RAC, professor Emerson Elias Merhy, a Parteira foi tomada como um importante dispositivo para acessar e pensar a Rede Cegonha no Amazonas, a parteira como guia do processo investigativo. Esta entrada de investigação só se efetivou com o convite e aceite de uma parteira da cidade de Manaus, em um primeiro momento, e de uma parteira de um município da região do Médio Amazonas. O convite foi feito para participarem ativamente do processo investigativo em uma composição de trocas e compartilhamentos sobre os processos de cuidar.
O estudo teve como objetivo acompanhar a Rede Cegonha tendo uma parteira como guia do processo investigativo e dos modos de cuidar em saúde.
A constituição da RAC em Manaus está ancorada em um projeto de pesquisa nacional. Toma o “Pesquisador In Mundo” como referência e o encontro como dispositivo gerador de afecções, potência de ação, forjado em ato (GOMES & MERHY, 2014). Os efeitos dos encontros com pesquisadores apoiadores da RAC, da Universidade, Fiocruz/AM e do SUS local fizeram reverberar a Rede Cegonha como um potente campo de investigação, diante de um contexto nacional e local que pede mais análises voltada ao cuidado as mulheres no período da gravidez, parto, puerpério e seu filho nos primeiros anos de vida. Tomar uma parteira como guia para acessar o campo de investigação é uma ideia colada na proposta de usuária-guia (ABRAHÃO et al, 2013; GOMES & MERHY, 2014), conformando uma pesquisa que se propõe a viver encontros com parteiras e mulheres assistidas por elas e dar visibilidade, sobre os processos envolvidos na produção do cuidado. Seus efeitos, pedem escolhas, implicação, produção em ato, um ceder entre, diante das surpresas de um campo de investigação aberto, em produção (RODRIGUES, 2011; TALLEMBERG, 2015). Uma pesquisa em acontecimento, uma pesquisa interferência, ampliando a dinâmica e o escopo da investigação para além do delimitado anteriormente. O encontro como acontecimento tem potência para produzir deslocamentos e abrir espaço para as vistas do ponto de vista, para os aprendizados com o mundo do cuidado, em uma relação de alteridade com o outro (MERHY, 2014). O processo investigativo segue em movimentos cartográficos, “(...) cartografar, para saber quem entrevistar e assim prosseguir com a investigação” (GOMES & MERHY, 2014, p. 21-2, apalpando a rede que constrói, seus caminhos, os fluxos e conexões existenciais de parteiras e das mulheres que partejam. Nesse sentido também nos interessa saber o que as parteiras apresentam da sua singular, caixa de ferramentas (MERHY & ONOKO, 1997). Uma pesquisa que está em curso e que trabalha com recursos metodológicos para auxiliar a análise do processo de cuidar - a construção de narrativas, capaz de ampliar os caminhos da investigação, em diálogo com o texto “Uma conversa sobre fontes narrativas” (EPS EM MOVIMENTO, 2014); e o uso da “Tenda do Conto”, trazendo a tessitura dos vínculos, a partir da palavra e da produção de sentidos, liberando sentimentos e novos processos de subjetivação (SILVA et al, 2014), pelas afecções produzidas nos encontros (ROLNIK, 2004). Algumas questões iniciais nos pautaram e ainda está em produção: Como as parteiras traçam suas redes? Quais os caminhos, arranjos e tecnologias que acionam? Como se dá a arte de partejar? O que tem a contar sobre? O que é a produção do cuidado do ponto de vista das parteiras? Como acompanhar uma grávida pelas mãos de uma parteira?
Resultados
O estado do Amazonas possui 1.176 parteiras cadastradas, dentre estas 340 não fizeram o curso de parteiras tradicionais, mas 836 fizeram o referido curso (AMAZONAS, 2015). A escolha de duas parteiras se deu a partir de critérios definidos e pactuados com o grupo de pesquisadores: estarem assistindo mulheres, considerando também a factibilidade de acessá-las e acompanha-las no processo investigativo. Uma delas, residente em Manaus e outra, na região do Médio Amazonas. Com a parteira Z, vinda de família de parteiras, professora aposentada e moradora de Manaus, tivemos um encontro potente, com um relato livre produzindo aprendizados e deslocamentos em nós. Em sua casa encontramos na sala principal, uma cama de casal, uma mesinha e um armário, móveis de apoio para os guardados necessários para fazer os partos - que a mais de um ano, à época, já não apareciam e também não era chamada a fazer. Não conseguimos rastrear as mulheres que partejou, pois em sua grande maioria moravam no interior do Estado. No encontro com Z conseguimos importantes recolhimentos sobre: a centralidade da arte de partejar em sua vida, partindo da arrumação da sua casa, e o acolhimento no seu lar, bem expresso quando recebeu uma mulher desconhecida, achada na rua pelo seu filho, acompanhando o parto, o nascimento e os primeiros dias do bebê; a sua família ativando processos de cuidar: seu filho se mobilizou para acolher uma mulher que estava em trabalho de parto na rua e, como não conseguiu acessar uma maternidade, a levou para a casa da mãe – produzindo vias de acessar o cuidado à grávida, dentro e fora do instituído; a força das redes vivas de conexões existencial - marcando o seu lugar de parteira e o interesse pela vida. Cumprindo uma agenda prévia fomos visitar e fazer o convite para a parteira N, moradora de uma comunidade do município de Itacoatiara/AM. Um encontro com muita produção de narrativas, de convites, pois outras parteiras foram se juntando e narrando seus modos de cuidar. O relato da parteira N trouxe um pouco da sua história de vida em conexão com sua história de parteira, que foi iniciada ainda na adolescência, acompanhando sua mãe também parteira, recentemente falecida. Nos mostrou seu kit parteira, abrindo e mostrando seu material, recebido no término do Curso de Parteiras Tradicional. Trouxe do constrangimento que sentiu ao saber que poderia não receber o kit e concluir o curso, pois no mesmo período tinha iniciado um curso de técnico de enfermagem, a tirando do critério e perfil para ser reconhecida como Parteira Tradicional. O recebimento do kit e sua certificação, para além do material didático, pois este não foi abordado, se mostrava como uma “premiação”, parte do reconhecimento da sua arte de partejar, com reflexos importantes para a sua comunidade. No decorrer da conversa trouxe algumas de suas batalhas e conquistas em favor da comunidade. Uma líder foi se apresentando - falou das suas lutas, perseverança, suas articulações e tensões, bem como algumas de suas frustrações, sempre mostrando o reconhecimento da força da participação da comunidade. A Parteira-Guia N nos mostrou sua casa, que também é um estabelecimento comercial, mas que tem um local reservado e uma cama destinada a fazer partos, com um banheiro vinculado, pensando nas grávidas que ainda atende. Sua cama, por vezes, também já foi utilizada para fazer partos. Se emocionou ao falar do livro com os registros dos partos da sua mãe, um livro já amarelo, já sendo tratado como uma relíquia. É parteira, mas atualmente também trabalha como técnica de enfermagem na Unidade Básica de Saúde, próximo a sua casa, à noite, pois esta funciona nos três turnos. Sua comunidade compreende uma média populacional de 2000 habitantes, tem uma UBS e duas Equipes de Saúde da Família. "Não há registros de mortalidade materna e neo-natal” (SIC). O que muito nos marcou da história da Parteira N é que ela cria seus caminhos e possibilidades de produzir cuidado dentro e fora da rede instituída de atenção e demonstra que é importante escutar e dar atenção ao como a mulher quer ter seu filho, estando atenta e aberta para atendê-la e acompanhá-la pelo tempo que for necessário, em sua casa, na UBS ou no próprio domicílio da gestante. Reforça que uma parteira costuma chamar outra parteira para ser ajudada no momento do parto, seguem se conectando no caminho, criando seus fluxos e conexões. E que as parteiras, assim com as Agentes Comunitárias de Saúde, incentivam as mulheres da comunidade a fazerem seu pré-natal. Saímos da casa de N e fomos andando e conhecendo outras parteiras no trajeto até a UBS, nas conversas, um desenho diferenciado ia-se mostrando, um arranjo misto para a produção do cuidado, demonstrando em especial o protagonismo de parteiras dessa comunidade rural do Amazonas. A partir desse encontro podemos elencar algumas questões: Como se estabelece essa rede das parteiras com a gestão, com os profissionais e com os usuários e grávidas da comunidade? Como fica o que transita fora do instituído, nas redes entre parteiras e grávidas, com seus fluxos e conexões? Qual a centralidade da usuária nessa rede? Agora seguiremos juntos com a parteira N, na lógica da construção compartilhada de uma pesquisa, a fabricar seus caminhos, pois o campo é uma produção.
Conclusão
Estar aberto as surpresas e efeitos da investigação permite que a pesquisa se dê em acontecimento, com possibilidades de ampliações e vazamentos, sinalizando para novos modos de fabricar o cuidado, como expresso na fala da parteira guia N que traz o pedido da mulher como centralidade – mas é importante se manter atento, pois “cada parto é uma caixinha de surpresas”.
Palavras-chave
Referências
ABRAHÃO, A.L.; et al. O pesquisador in-mundo e o processo de outras formas de investigação em saúde. Lugar Comum (UFRJ), n. 39, p. 133-144, 2013.
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