Rede Unida, Encontro Regional Norte 2015

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A Rede Cegonha pela Polifonia das Fontes - Narrativas e Conexões de uma Rede em Produção
Angela Carla Rocha Schiffler, Julio Cesar Schweickardt, Naila Mirian Las-Casas Feichas, Sandra Cavalcante Lima, Luena Matheus Xerez, Brena Silva Santos, Katherine Benevides, Nicolás Esteban Heufmann, Neide Negreiros

Última alteração: 2016-05-30

Resumo


INTRODUÇÃO: Este texto versa sobre a construção coletiva de uma pesquisa de âmbito nacional executada pela UFRJ e integrante do "Observatório de Políticas e o Cuidado em Saúde". A pesquisa é intitulada “Observatório Nacional da Produção de Cuidado em diferentes modalidades à luz do processo de implantação das Redes Temáticas de Atenção à Saúde no Sistema Único de Saúde: Avalia quem pede, quem faz e quem usa, conformando uma Rede de Avaliação Compartilhada (RAC), Universidade do SUS. Trata-se de uma investigação compartilhada, no sentido de produção de trocas e compartilhamentos entre diferentes sujeitos como trabalhadores da saúde, usuários, docentes e pesquisadores, constituindo um grupo interessado em trazer para a análise a produção do cuidado que, no campo loco regional do Amazonas, tem como foco a Rede Cegonha: rede temática preconizada como uma estratégia e um modelo de atenção que amplia e fortalece a assistência às grávidas e às crianças até o segundo ano de vida (BRASIL, 2011). A escolha do tema e dos territórios a serem analisados foi discutida com profissionais da Universidade do Estado do Amazonas, da FIOCRUZ-AM e do SUS local. Acessar a Rede Cegonha a partir de uma usuária assistida em um dos pontos dessa rede foi a ideia disparadora dessa investigação. Uma usuária foi apresenta por uma das pesquisadoras, tratava-se de uma puérpera que, ao cumprir com todas suas consultas de pré-natal, precisou passar por uma peregrinação nas maternidades de Manaus para sentir-se cuidada e ter a assistência necessária para o nascimento do seu filho. Após várias discussões no coletivo nos vimos diante de um caso factível de ser aberto, ser ativado e de ativar todos os atores em cena, em seu propósito de constituir-se sendo pesquisadores, em uma relação de alteridade, na produção de trocas e conhecimentos, no território do encontro, da vida (ABRAHÃO et al, 2013; GOMES & MERHY, 2014). Uma investigação, seus desafios: Como experimentar modos de investigação capazes de produzir análises a partir do ato de cuidar? Como acompanhar uma usuária, a partir de algum ponto da Rede Cegonha, seguindo por seus fluxos e conexões existenciais? O estudo teve como objetivo principal acompanhar a produção do cuidado na Rede Cegonha de Manaus, em seus aspectos micropolíticos, tendo uma usuária como guia em suas redes de conexões existenciais.

A constituição da RAC em Manaus está ancorada em um projeto de pesquisa nacional. Toma o “Pesquisador In Mundo” como referência e o encontro como dispositivo gerador de afecções, potência de ação, forjado em ato (ABRAHÃO et al, 2013; GOMES & MERHY, 2014). Os efeitos dos encontros com pesquisadores apoiadores da RAC, da Universidade e do SUS local fizeram reverberar a Rede Cegonha como um potente campo de investigação, diante de um contexto nacional e local que pede mais análises voltada ao cuidado as mulheres no período da gravidez, parto, puerpério e seu filho nos primeiros anos de vida. Tomar uma usuária como guia do processo investigativo (ABRAHÃO et al, 2013; GOMES & MERHY, 2014) nos colocou diante de uma pesquisa que se propõe a viver encontros com o usuário e dar visibilidade sobre os processos envolvidos na produção do cuidado. O encontro como acontecimento tem potência para produzir deslocamentos e abrir espaço para as vistas do ponto de vista, para os aprendizados com o mundo do cuidado, em uma relação de alteridade com o outro (MERHY, 2014). O processo investigativo seguiu em movimentos cartográficos, “(...) cartografar, para saber quem entrevistar e assim prosseguir com a investigação” (GOMES & MERHY, 2014, p. 21-2), apalpando a rede que a usuária guia utilizou, seus caminhos, fluxos e conexões existenciais e em produção de uma singular “caixa de ferramentas” (MERHY & ONOKO, 1997). Trabalhamos com recursos metodológico que auxiliaram na análise do processo de cuidar: a construção de narrativas, em diálogo com o texto “Uma conversa sobre fontes narrativas” (EPS EM MOVIMENTO, 2014). Narrativa capaz de ampliar os caminhos da investigação bem como o uso do fluxograma analisador (MERHY & ONOCKO, 1997; SCHIFFLER et al, 2005; FRANCO & MERHY, 2013), uma ferramenta para expor estranhamentos, ruídos das ações de saúde. O fluxograma analisador foi composto utilizando informações consideradas chave pelo coletivo, como interrogadora dos sentidos e significados do agir em saúde (MERHY & ONOCKO, 1997).

RESULTADOS E DISCUSSÕES: O caso escolhido foi o da puérpera M, 19 anos, nascida em Tabatinga/ AM, mas criada pela avó em Manaus. Casou-se aos 17 anos, após namoro que iniciou aos 14 anos. Mantinha, desde o início da relação conjugal, o desejo de ser mãe. Fez todas as consultas de pré-natal, a primeira foi levada a Unidade Básica de Saúde - UBS pelas mãos da cunhada, nas demais, em sua maioria, seguiu acompanhada pelo marido. Trazia em suas consultas pós-parto uma fala recorrente sobre o seu sofrimento e peregrinação para acessar a maternidade, vincular-se e ter seu cuidado garantido. As conversas com os profissionais da UBS seguiram em construção de sentido sobre a pesquisa e a ideia de usuária-guia, e a primeira devolutiva que tivemos foi - Rede Cegonha? Nós também queremos entender. Construímos o fluxograma analisador dos dois últimos dias antes do parto de M, utilizando como fonte: sua primeira narrativa, e os prontuários da UBS e da Maternidade. Seus achados mostram que: M percorreu 06 das 08 maternidades públicas de Manaus, fazendo esse trajeto de ônibus, acompanhada por seu marido e por sua mãe. Ficou em evidência: a falta de um olhar cuidadoso e de uma escuta atenciosa sobre as suas necessidades e fragilidades, passando por “muito constrangimento”, muitos toques, profissionais distintos e insegurança, devido a condutas e encaminhamentos também distintos, aumentando o medo de seu filho passar da hora de nascer, como no caso de sua vizinha e de uma outra moradora da comunidade. A construção de narrativas também deu a possibilidade de destaque aos “analisadores” que fazem a rede falar, e as fontes de conexões existenciais de M., trazendo novos pontos de vista e aproximações da sua peregrinação e sofrimento pela rede. No encontro com os trabalhadores da UBS ao falarem de suas experiências com a gravidez e o parto um novo movimento se apresentou, deslocamentos de sujeitos, trazendo vivências e implicações, não para falar sobre, mas para falar com, e como sujeitos múltiplos que somos – profissional, usuário, familiar. Esse deslocamento fez emergir uma multidão, emergências de multiplicidades (NEGRI, 2004; NEGRI & HARDT, 2005), para problematizar a Rede Cegonha e trazer novos ângulos de análise sobre a produção do cuidado, produzindo diferença. Segundo Franco (2013), estimular coletivos é procurar ativar sujeitos para que produzam fluxos e redes, “sujeitos desejantes” capazes de atuar em uma realidade em que vivem na repetição. E, assim, seguimos trazendo a micropolítica das redes e os modos de cuidar para o centro do debate, tomando o campo como uma produção. Nesse contexto, a polifonia das fontes seguiu pedindo passagem.

UM DIÁLOGO COM A POLIFONIA A palavra polifonia, segundo Bakhtin, penetra todas as dimensões da vida social, desde o cotidiano até as mais elaboradas questões. “As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios” (BAKHTIN, 1986, p. 41). Este é um princípio da noção de polifonia, ou seja, as várias vozes que habitam no sujeito, as palavras não possuem uma pureza material neutra, mas são formadas a partir de infinitas relações e interrelações que se dão no interior de uma realidade social. A palavra não é, portanto, nem neutra nem transparente, mas sim, uma construção múltipla e complexa que é a própria marca do discurso. Dentro desta perspectiva ideológica, o signo, “resulta de um consenso entre os indivíduos socialmente organizados no decorrer de um processo de interação” (idem, p. 44). Atrás e através do que é dito há uma infinidade de vozes, algumas distantes e outras próximas que falam através do falante. Assim, “a linguagem como plural e como espaço onde convivem e dialogam diversas vozes representando (...) diferentes pontos de vista que convivem numa permanente interação.” (SENA, 1997, p. 79). As outras vozes estão presentes e dialogam no discurso, numa intensa inter-relação social que fará do discurso do sujeito não de um indivíduo neutro e único, mas de um sujeito repleto de vários sons, como numa “sinfonia”, em que os vários instrumentos tocam, dando a imagem de uma aparente sincronia. Estamos tratando das vozes no sujeito, mas também consideramos que o discurso que ora realizamos aqui também é de diferentes sujeitos que se colocam na relação de diálogo e de construção das ideias. Tomamos a ideia de polifonia para não negar a diversidade e a diferença das vozes que estão em cada um de nós e no próprio coletivo. Compartilhamos de alguns consensos, pois esses são importantes para que se faça o discurso, no entanto não podemos negar as diferenças que estão no terreno da história e da vida dos sujeitos. Assim, nos colocamos como sujeitos aprendentes que se constroem na relação de diálogo e de construção do conhecimento. AS HISTÓRIAS DE M E AS INTEFERÊNCIAS EM NÓS: Voltando aos encontros com M, marca-se aqui o que vivenciamos quando saímos juntas em busca das fontes tão significativas em sua história de vida. Ali não estávamos só com uma usuária, mas também com a mãe, filha, mulher, M e suas multiplicidades, trazendo seus medos, gostos, relações de afeto e conflitos, seu jeito de ser no mundo. Uma abertura para um encontro produtor de vida em nós, com as afecções do corpo vibrátil (ROLNIK, 2004). Uma abertura para conversas “intercessoras” a nos tomar, “produtora de desvios, um ‘ceder entre’, pois nada se preserva como antes do próprio ato” (RODRIGUES, 2011, p. 236; TALLEMBERG, 2015). Tomando esse último encontro com M iluminamos alguns dos aprendizados que tivemos: a produção do cuidado e da vida requer encontros que acolhem e reconhecem a multiplicidade do ser, nos espaços instituídos ou não; o encontro, em ato, traz para cena as diferenças, as tensões e o comum em nós e constrói caminhos e sentidos para firmar novas apostas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: Uma pesquisa interferência foi se compondo com pesquisadores implicados com a produção do cuidado, com uma usuária-guia se formando pela cartografia das fontes, pelas “redes vivas de conexões existenciais”. E, nos encontros, nos compartilhamentos, atentando para as “polifonias” (BAHKTIN, 1986, 2000) das fontes, uma multidão foi se apresentando. O usuário-guia segue dando visibilidade e “dizibilidade” à produção do cuidado, a um conjunto de práticas que, em seus aspectos micropolíticos, fazem a diferença na construção de projetos cuidadores.

 


Palavras-chave


Saúde da Mulher e da Criança; Comportamento Materno; Serviços de Saúde; Pesquisa em Saúde; Amazônia

Referências


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