Rede Unida, Encontro Regional Norte 2015

Tamanho da fonte: 
A Cartografia do Cuidado que navega no Amazonas
Rosangela Maria Barbosa de Melo

Última alteração: 2016-05-30

Resumo


Apreciando a Paisagem

O objetivo é apresentar a experiência do Projeto Caminhos do Cuidado, realizado em parceria entre as três instituições governamentais e executado pelo Centro de Educação Tecnológica do Amazonas (CETAM) no Estado do Amazonas. A primeira tarefa foi formar profissionais para desempenharem a função de Tutores. Em seguida se deu a formação de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e Auxiliares Técnicos de Enfermagem (ATENF) na temática das drogas. A metodologia do projeto foi participativa e buscou refletir sobre a Rede Psicossocial. As atividades estavam relacionadas às questões do uso das drogas, provocando uma reflexão dos trabalhadores sobre seu território, seus moradores e suas histórias. Foram produzidos diversos mapas dos territórios, reconhecendo os pontos de uso das drogas, os lugares de produção de prazer, diversão e lazer, as potencias e as fragilidades do lugar e seus habitantes. Os mapas e as falas revelam e registram os momentos do Caminho e apontam para formas de Cuidado que diminuem "a distância entre intenção e gesto" (PESSOA, 2010). No Amazonas, o projeto ganhou dimensões especiais pela dinâmica dos mapas que caracterizaram os territórios de vida e dos territórios marcadas pelas águas dos rios, igarapés, lagos e paranás.

O projeto “Caminhos do Cuidado” partiu da Coordenação Geral de Saúde Mental Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde (BRASIL, 2014) para percorrer o País e ofertar uma formação voltada para o atendimento e intervenção, com usuários de álcool e outras drogas, para a totalidade dos trabalhadores de nível médio da Atenção Básica: Agentes Comunitários de Saúde e Auxiliares e Técnicos de Enfermagem, os passageiros. Para tanto reuniu, na tripulação, a Rede de Escolas Técnicas do Sistema Único de Saúde (SUS), a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), o Grupo Hospital Conceição (GHC) e lançou o desafio às Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde.

Em resposta, durante os anos de 2013 a 2015 todos os estados brasileiros executaram a formação proposta, visando possibilitar uma reflexão sobre os pré-conceitos com relação ao uso de drogas e seus usuários. Dessa forma, ofertando ferramentas para contribuir com o trabalho cotidiano de 290.197 trabalhadores da base do SUS, que deverão possibilitar o acesso ao cuidado a milhares de “pessoas invisíveis” ultrapassando a meta inicial e certificando 292.196 pessoas. Apenas cinco estados não alcançaram a meta (BRASIL, 2014).

Conforme proposto pelo projeto, a metodologia participativa partiu do processo de trabalho, da valorização das práticas e vivências dos referidos trabalhadores do SUS, em seu próprio território propondo momentos presenciais e de dispersão, possibilitando retornar aos territórios com o olhar mais apurado. A leitura dos textos, o material audiovisual e as rodas de conversa provocaram “banzeiros” nas certezas sobre as questões relacionadas ao uso das drogas (lícitas e ilícitas,) preconceitos, territórios vivos (seus moradores e suas histórias), favorecendo a lógica da Redução de Danos, um dos eixos do Plano de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas

No Amazonas, o Projeto teve início em 2013 executado pela Escola Técnica do SUS Enfermeira Francisca Savedra - (ETSUS) do Centro de Educação Tecnológica do Amazonas (CETAM), em parceria com a Gerência de Saúde Mental Álcool e outras Drogas da Secretaria de Estado da Saúde do Amazonas (SUSAM), convocando, formando e deslocando apoiadores e tutores para que, em junho de 2015, o projeto “Caminhos do Cuidado” tivesse atracado nos 62 portos, nas 9 Regiões de Saúde do Estado.

Devido às características da região, enfrentamos dificuldades na logística de comunicação com os secretários de saúde, com os trabalhadores nas comunidades mais distantes da sede do município, no deslocamento dos tutores para os municípios e dos trabalhadores das comunidades da área rural e ribeirinhas para a cidade, segundo algumas falas: “Só fiquei sabendo desse curso quando o colega avisou pelo rádio”. “Desculpa ter chegado agora, fiquei esperando o recreio passar e trazer o diesel para o rabeta. “Minha comunidade é a mais longe, são sete horas de rabeta pra chegar aqui”. O que acarretou a necessidade de ampliar o período da navegação do Caminhos do Cuidado em relação aos outros estados. Aqui o tempo é outro!

 

Esse trabalho traz um recorte de nossa atuação, no Estado do Amazonas, como tutora, nos municípios de Beruri e Boa Vista do Ramos, pertencentes as Regiões de Saúde Rio Negro/Solimões e Baixo Amazonas, respectivamente. A geografia do estado propicia, essencialmente, o deslocamento por via fluvial e o período da cheia revelou um território inundado e modificado, interferindo diretamente nas formas de viver na floresta (TAMBUCCI, 2014), incluindo o acesso aos cuidados de saúde. Beruri é uma cidade do Rio Purus, afluente do Solimões, com acesso por via terrestre até do Porto da cidade de Manacapuru para subir o Solimões, numa lancha rápida por quatro horas. Já Boa Vista do Ramos é banhada pelo Paraná1 do Ramos afluente do Rio Amazonas. O deslocamento se deu de “Barco Recreio” por quatorze horas descendo o Rio Amazonas. Os municípios organizaram turmas em média, com trinta ACS e ATENF que durante quarenta horas foram chamados a descobrir caminhos e alternativas para enfrentar os desafios que envolvem o território e as questões da saúde mental, em especial o uso de drogas. Os grupos eram formados por trabalhadores da área urbana e rural dos municípios, propiciando uma troca de informações sobre as realidades, as práticas cotidianas e as particularidades dos territórios, essa mistura apontou para a ausência de ações de saúde destinadas a essa parte da população, usuária de drogas lícitas e/ou ilícitas. Fato constante nas falas dos trabalhadores: “não sei o que fazer”, “nunca pensei isso”, “sinto medo”.

No primeiro dia da formação, durante a dinâmica de construção da teia/rede, os trabalhadores puderam expressar o entendimento que tinham sobre rede: “de dormir, que acolhe, que precisa do outro pra se fazer, que sustenta.” Como bons navegantes, os grupos construíram os mapas dos seus territórios, reconhecendo os pontos de uso de drogas, os lugares de produção de prazer, lazer e religiosidade, as potencias e as fragilidades do lugar e seus habitantes na promoção do cuidado.

O material didático contem textos e atividades práticas que buscam voltar o olhar para a lida cotidiana, suas possibilidades e limites de intervenção, produzindo reflexões e falas sobre: o que tenho – “humildade”, “prancheta, caneta, lápis”, “responsabilidade”, “vontade de aprender”; o que preciso construir – “mais esperança,valorizar as redes, vínculo de relacionamento”, e; o que posso construir – “metas, mais conhecimento, trabalho junto, para a melhoria das próprias práticas do cuidado”. A oferta de ferramentas como a escuta, o acolhimento, a clínica ampliada, o genograma, o ecomapa e o projeto terapêutico singular, ampliou o olhar para uma forma de cuidado que valoriza o usuário, o trabalhador e o SUS. Após a semana de dispersão e a apresentação das atividades propostas para esse período retomamos os Mapas para partir de um caso apresentado pelos grupos traçar os Caminhos do Cuidado, possíveis dentro daquele território tantas vezes percorrido e nem sempre identificado como lugar de cuidar. Os Mapas registram o “Caminho” ainda não percorrido e revelam novas formas de cuidado que propõem diminuir "a distância entre intenção e gesto" (PESSOA, 2010).

Um dos casos narrados foi o de JM, 36 anos, pescador profissional, dono de embarcação, casado há 16 anos, pai de dois filhos adolescentes, nascido na comunidade onde mora, trabalhador considerado como exemplo, referência para mediar os conflitos entre os comunitários. Há três anos a mulher abandonou a casa e os filhos, voltando para a capital. Com esse fato, JM começou a frequentar as tabernas em busca de cachaça, deixando de trabalhar, vendendo os bens que conquistou com tanto trabalho, os filhos foram para a casa dos avós, o que agravou a tristeza e o desinteresse pela vida, tornando-se o “pé inchado” da comunidade. Com esse caso, o grupo se voltou ao mapa e apontou Caminhos: convidar para a pescaria da Festa do Tucunaré, pedir que conserte umas redes de pesca que estavam no galpão da colônia de pescadores.

Outro local identificado como espaço de cuidado foi a escola tem um projeto de artesanato e pode ser o local para ensinar os alunos a produzir tarrafas e malhadeiras. Cuidar da saúde agendando consulta quando o médico vier à comunidade. Assim cada componente do grupo propunha formas de Cuidado nunca antes praticado, causando surpresa o quanto de possibilidades passava despercebido.

O Porto

O Caminhos do Cuidado retornou ao porto de partida repleto de boas histórias, histórias de sucesso, histórias das pessoas, histórias da forma de cuidar, histórias das vidas e dos lugares, tendo percorrido todo o País, cumprindo e ultrapassando as metas inicias. Apenas 21,7% dos estados da federação não conseguiram alcançar as metas (BRASIL, 2014). As vozes dos ACS e ATENF disseram através das avaliações: nunca havia acontecido um curso como esse, agradecendo a oportunidade de aprender coisas que nunca tinham pensado, considerando que depois do curso iriam fazer um trabalho muito melhor: “agora vou poder me aproximar das pessoas que ficam bebendo na esquina e saber o que dizer a elas”. Esses como outras centenas de depoimentos, corrobora a certeza de que essa aposta do Caminhos do Cuidado transformou-se numa expedição vitoriosa.

No Amazonas, o projeto ganhou dimensões especiais pela dinâmica que caracterizam os territórios de vida, suas populações tradicionais marcadas pelas águas dos rios, igarapés, lagos e paranãs. Aproximadamente, 6.562 trabalhadores da atenção primária foram afetados por essa formação “cheia de águas novas”, que refrescam, inundam e fertilizam as práticas de cuidado. Acreditamos que a navegação do “Caminho do Cuidado” foi profícua, dispersou sementes e buscou modificar as paisagens enquanto ativador de novas práticas. Aqui, como esclarece Tocantins (1973), o Rio comanda a Vida!

Assim, tal como Guimaraes Rosa (1986), acreditamos que o real não está na saída e nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia!

1 Termo que especifica um desvio de um rio que se encontra mais a frete.


Palavras-chave


Saúde mental; Educação em Saúde; Trabalhadores da Saúde; Amazônia