Rede Unida, 12º Congresso Internacional da Rede Unida

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CARTOGRAFANDO A PRODUÇÃO DE CUIDADO PELA FERRAMENTA DO USUÁRIO-GUIA
MICHELLY SANTOS DE ANDRADE, ADRIANA NASCIMENTO GOMES, MARCOS OLIVEIRA DIAS VASCONCELOS

Última alteração: 2015-11-23

Resumo


APRESENTAÇÃO: O resgate da dimensão cuidadora tem suscitado a constante necessidade de se inventar novas práticas em saúde (ARKEMAN; FEUERWERKER, 2009), uma vez que há uma oferta incansável de procedimentos técnicos em detrimento do estabelecimento de vínculos resultantes da relação entre o usuário e o trabalhador. Voltar o olhar para o usuário, colocando-o no centro das reflexões para se avaliar a produção do cuidado em rede tem revelado uma das apostas mais potentes. Nessa perspectiva, trazer à cena os vários atores envolvidos na produção do cuidado de um usuário, a partir da construção de relatos escritos ou orais tem se mostrado uma possibilidade para se efetivar essa análise. Pois, possibilita produzir visibilidade dos múltiplos acontecimentos e atravessamentos experimentados na situação (EPS EM MOVIMENTO, 2014a). Assim, narrar os encontros possíveis entre usuário e trabalhadores, entre ele e outros usuários, entre trabalhadores - trabalhadores e mesmo trabalhadores - gestores, traçando os caminhos e afetos produzidos nesses encontros, é a função do usuário-guia (EPS EM MOVIMENTO, 2014b). Este trabalho tem por objetivo demonstrar a potência da ferramenta usuário - guia para cartografar a produção de cuidado.   DESENVOLVIMENTO: A narrativa do usuário-guia em pauta é parte da pesquisa RAC desenvolvida pela Linha de Pesquisa da Micropolítica do Trabalho e o Cuidado em Saúde da UFRJ. A coleta de dados ocorreu entre março e abril de 2015. Para conhecer como o cuidado era operado pelas equipes do serviço de atenção domiciliar, se utilizou da ferramenta do usuário-guia. O método empregado para tal fim foi à construção de narrativas escritas, que incluíram os vários acontecimentos nos encontros com os trabalhadores e seus respectivos usuários e/ou entre pesquisadores e usuários, em acompanhamentos realizados em seus domicílios e registrados nos diários de campo dos pesquisadores. A narrativa a seguir traz alguns fragmentos de uma dessas cenas em que trazemos à baila a vivência relacionada a esse usuário (João, ninguém?). RESULTADOS: Em uma quarta-feira qualquer de dezembro, conhecemos o João. O carro do serviço parou em frente a uma pequena casa de um azul desbotado com um jardim repleto de plantas. No terraço vários objetos espalhados. Uma decoração que tinha de tudo, até enfeites natalinos. Claro, era chegado o Natal! Mas, lá dentro, quase nada se parecia com o Natal, de semelhante apenas o som alto que vinha das televisões ligadas. A equipe foi entrando. Esperamos um pouco. Ficamos ali, no terraço. Observamos uma mulher com um sorriso tímido, desconcertado, que andava de lá para cá e respondia a cada pergunta dos profissionais. Seus cabelos e suas roupas não sinalizavam tempo para cuidar de si. Olhando mais, atentamente, vimos dois idosos, um senhor e uma senhora que pareciam não ver o tempo passar ali, sentados. Ele, cadeirante, com sequelas de AVE e ela com artrose na coluna e joelho e, com muita curiosidade com os estranhos. João conta que quando não está dispneico, sente muita dor para ficar em pé. Disse já ter perdido cerca de 70 Kg, desde que começou a receber atenção do SAD. Ele fala que a perda de peso tem sido sofrida, diz que “sente-se como um bicho”, uma vez que sua dieta é à base de vegetais e apenas uma vez por semana, à base de carne. Perguntado o quanto comia de carne antes dessa dieta, afirmou ser cerca de 1kg de carne durante os  finais de semana. Durante o retorno ao prédio do SAD, um dos profissionais diz que há de se analisar bem a fala do usuário, pois a dieta que ele diz fazer, de fato não a faz e que a regularidade dos cuidados não tem sido a pactuada. Para a equipe o João é um peso, um desgaste, não deveria mais ser acompanhado por ela. A equipe sente-se manipulada e refém do mesmo. O que fazer, então, com o João? Ficamos nos perguntando o que poderia se esperar dos “Joãos” que não enxergam mais possibilidade de resolutividade dos seus problemas, frente ao (des) cuidado que vem recebendo dos serviços de saúde? Seria a perda de peso a única forma de cuidar do João? Se a perda de peso não é a única condição, ou seja, se há risco cardíaco ou quaisquer outros para a realização da cirurgia, por que não se fala abertamente com o João? Voltamos mais algumas vezes para continuar a conversa com o João. Nessas conversas outros aspectos de sua história de vida vieram à tona. Relatou que há quatro anos não consegue mais ficar em pé. Passa o dia inteiro deitado e sentado na sua cama, saindo apenas em casos de emergência ou para realização de exames e diz: “Fui perdendo, gradativamente, nos cinco anos o estímulo de andar, né?” João relatou que encontrou o SAD pela internet e atribui parte da visibilidade que o serviço tem atualmente à sua imagem: “[...] depois de várias reportagens do SAD, em cima de mim [...] o SAD hoje tem uma abrangência maior”. Nos últimos quatro anos, João tenta articular sua cirurgia bariátrica. Demonstrando seu descontentamento por ter sido enganado ao longo dos últimos anos, com vários episódios de cancelamentos da cirurgia, mesmo após a realização de diversas avaliações e exames pré-cirúrgicos: “Não. Nunca tive um feedback final... assim [...] Os equipamentos sempre eram garantidos e sumiam, assim, de momento.” João, consciente de seus direitos por um tratamento efetivo para a obesidade, assume que já tentou pressionar o médico de várias formas para abreviar a cirurgia: “Ele sabe o paciente que tem [...] Se é para enlouquecer, eu enlouqueço ligeiro [...] Eu já botei ele na página da internet, dizendo ‘por que não faz a cirurgia, Dr. Pedro?’. Ele levou dez mil curtidas [...]”. O desconforto e constrangimento em situações de emergência e urgência são frequentes, conforme se percebe na fala a seguir: “Como eu pesava mais que o que peso agora... Pesava 313 kg. Hoje, eu tô com 198 Kg. [...] Aí, lá na UPA [Unidade de Pronto Atendimento] não tem estrutura para me receber. [...] Então fiquei lá... Você sabe: [como] Jesus Cristo,  estirado na cruz. E o SAMU em si não tem [...] condição de me remover daqui; tem que chamar o apoio do bombeiro.” Ao perguntarmos em que lugar ele gostaria de ir após a cirurgia, ele nos surpreende com a curta frase: “ver o mar...”. Para nossa surpresa, tal pedido nunca tinha sido feito a ninguém da equipe de saúde ou mesmo da sua família. João nos surpreende mais uma vez: “Isto [falar da vida] é a primeira vez que eu estou tendo”. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A escrita da narrativa permitiu dar visibilidade as lacunas que existe para o usuário. Esta narrativa é um dos primeiros passos, seguidos de encontro com o cuidador e o usuário e outros envolvidos na produção do cuidado. Em seguida pode-se fazer uma devolutiva destas narrativas disparando questionamentos e reflexões acerca do processo de trabalho existente no serviço e na rede de saúde, promovendo a Educação Permanente em Saúde. As narrativas dos trabalhadores com suas memórias do trabalho no cuidado se mostraram importantes fontes para a pesquisa, pois evidencia situações vivenciadas em relação ao trabalho e ao cuidado em saúde e dão pistas dos invisíveis e indizíveis que permeiam essas narrativas.

Palavras-chave


CUIDADO;CARTOGRAFIA; USUÁRIO-GUIA

Referências


ARKEMAN,; FEUERWERKER, L. M.C.. Que oportunidades o SUS me oferece na saúde coletiva? Onde posso atuar e que competências preciso desenvolver? IN: CAMPOS, G.W. e col. Tratado de Saúde Coletiva. 2ed. São Paulo: HUCITEC, 2009.

EPS EM MOVIMENTO. Uma conversa sobre fontes narrativas. 2014. Disponível em: file:///C:/Users/User/Downloads/Uma%20conversa%20sobre%20fontes%20e%20narrativas.pdf . Acesso em: 17/10/15.

EPS EM MOVIMENTO. Usuário guia. 2014. Disponível em: http://eps.otics.org/alunos/paraiba/subcop/pb-grupo-3/acervo/o-texto-usuario-guia . Acesso em: 17/101/15.