Rede Unida, 12º Congresso Internacional da Rede Unida

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O PROCESSAMENTO DE EXPERIÊNCIAS COMO DISPOSITIVO PARA A PRODUÇÃO DE PESQUISA E DO CUIDADO EM SAÚDE
Carla Vanessa Lopes

Última alteração: 2015-11-23

Resumo


APRESENTAÇÃO: Este é um texto produzido a partir das afecções vividas pelos pesquisadores nas investigações do “Observatório nacional da produção de cuidado em diferentes modalidades, à luz do processo de implantação das redes temáticas de atenção à saúde no Sistema Único de Saúde: avalia quem pede quem faz e quem usa”, pesquisa mais conhecida como Rede de Avaliação Compartilhada (RAC). Nesse estudo, tomamos o vivido nos encontros em uma rede de saúde como substrato e o que chamamos de “processamento” coletivo de campo como dispositivo de problematização, a fim de extrair aprendizagens do próprio processo da pesquisa, mas também das práticas instituídas em nós e os efeitos desses agires na produção do cuidado. DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO: A metodologia utilizada na RAC, denominada de pesquisa interferência, nos remete aos múltiplos encontros entre pesquisadores e protagonistas da produção do cuidado-usuários, trabalhadores e gestores que operam como guias, nos conduzindo pelos caminhos que trilham no cotidiano. A aposta da pesquisa interferência está num processo de investigação capaz de captar a produção do cuidado em curso e retornar para a rede com acúmulo, mudanças, novos saberes e fazeres de forma permanente, durante todo o decorrer do estudo. No processo de produção da RAC - e de nós mesmos enquanto pesquisadores que pudemos perceber que as intensidades que vivemos - desafios, dilemas, impedimentos, entre outros apontam para a necessidade de momentos de processamento que podem ser entendidos como espaços autoanalíticos e de análise coletiva e de abertura à alteridade. Nos processamentos, analisamos nossas afecções, isto é, a ação que nosso corpo sofre dos outros corpos, os efeitos que os encontros vão produzindo naqueles que participam na produção do cuidado e da pesquisa. Processar o campo de pesquisa é aqui tomado não como recolhimento de evidências e análise de dados, promovendo a cisão clássica entre sujeito e objeto, mas como recolher e avaliar as forças de saber-poder que operam nas práticas, inclusive da própria pesquisa e de seus efeitos. No espaço da produção do cuidado e da pesquisa, vivemos como pesquisadores, trabalhadores e como usuários(as), compondo mapas analíticos das experiências dos pesquisadores-trabalhadores. Este espaço opera no tensionamento de saberes e não saberes, na produção de estranhamento a partir das narrativas do cotidiano dos serviços e dos casos. Na medida em que entramos nos espaços das unidades, participamos das reuniões de equipe, encontramos o usuário guia, estabelecemos conexões, nos interrogamos: O que fazer agora? Desterritorializamo-nos e descobrimos os muitos outros presentes neste lugar da pesquisa e da produção do pesquisador. Desta forma, a produção da pesquisa e do pesquisador assim como a do cuidado é uma construção em acontecimento com os outros, portanto, é a presença dos outros em nós. Este movimento desacomoda as certezas produzidas pelas leituras formais nas correlações causa - efeito - ação, recolhendo como efeitos a abertura para outros mundos a serem recontados, remontados, memoriados. Nos encontros, nossas intencionalidades vão desaparecendo e as afecções produzidas em relações intercessoras vão dando passagem a outras possibilidades e capacidades de ser e de estar na vida e com outro. Nesse momento, nos identificamos com quem estão ao nosso lado, com sua angústia em buscar respostas, parcerias, ajudas. Vemos juntos que os protocolos, as políticas, e as invenções mais formalizadas não dão respostas satisfatórias aos inúmeros problemas que surgem a cada caso e que pedem a existência de rede, seja ela formal ou não. Lembramos diversos momentos em que vivenciamos situações semelhantes e das invenções que fizemos e que deixamos de fazer, de nossas angústias, medos, frustrações. E, é a partir desse território das incertezas que buscamos construir nossas aprendizagens, no espaço de processamentos destas experiências. Mas o que são, afinal, estes processamentos? Os encontros do coletivo de pesquisa para o processamento são momentos nos quais narramos nossas experiências e o que nos aconteceu, o que sentimos e experienciamos em nossos corpos. É o momento no qual podemos enunciar aquilo que silenciamos - nossos julgamentos (Como ele não percebe isso? Que serviço confuso! Por que não fez tal coisa?), nossas certezas (Eles deviam fazer assim! O correto seria proceder de tal maneira!), nossas incertezas (o que eu faria nessa situação? Se eu não tiver a resposta certa para esse caso vou decepcionar o outro?). É o espaço em que externalizamos nossas dúvidas e questionamentos: como manejamos isso em nós, diante dos outros? Temos que dar as respostas na condução dos casos? O que eu faço quando julgo que o outro não vê o que eu vejo? O que eu faço com minha sensação de que ele tem que aprender comigo e isso é da minha responsabilidade provocar? O que eu faria se fosse o(a) trabalhador(a) nessa situação? Desse modo, os encontros e processamentos produzem, em ato, novas referências em relação à pesquisa, ao cuidado e à gestão do cuidado em rede; protocolos, normas e fluxos de atendimento são colocados à prova, desconstruídos em prol da produção de singularidades. Nos processamentos, trabalhamos com um conjunto de questões que tem nos possibilitado alcançar os vários planos de afecção vividos. No encontro com trabalhadores, usuários e gestores, o que aprendi para a minha prática de trabalhador da saúde, de pesquisador, sobre os serviços e sobre o usuário? O que percebo em mim (eu profissional de saúde, pesquisador)? Como e o que conheço do serviço, da prática dos trabalhadores e do usuário? Como e o que o usuário movimenta na rede e quais seus efeitos nos trabalhadores e nos pesquisadores? Quais as armadilhas produzidas (por nós mesmos ou por outros) e desarmadas? O que recolhemos quando o usuário entrou mais fortemente na cena e quando saiu da cena? Como estas aprendizagens podem trazer novas possibilidades para a produção do trabalho em rede? Este é o ponto em que a pesquisa e o cuidado se produzem como uma dobra, na qual ao percorrermos a pesquisa chegamos ao cuidado e ao percorrermos o cuidado chegamos à pesquisa, à produção de nossos conhecimentos e de novas perguntas, num dever cuidador - pesquisador - usuário e usuário - pesquisador - cuidador. E, nesse exercício de se deixar afetar pelos ruídos, os meus e dos outros, recheamos nossas caixas de ferramentas de pesquisador, trabalhador da saúde e usuário com novos saberes, novas estratégias para lidar com a multiplicidade de situações das quais os cotidianos da saúde e da pesquisa são fontes inesgotáveis. CONSIDERAÇÕES FINAIS: O que a pesquisa RAC tem tornado possível formular é que os espaços de processamento não são espaços de interpretação da realidade, mas da experienciação das diversas realidades do cotidiano da saúde, na produção do cuidado. Pesquisadores e trabalhadores têm caixa de ferramentas recheadas com experimentações, acontecimentos, mas, também, com representações conceituais, normas, protocolos, etc. É na experimentação, produzindo movimentos, linhas, contornos e torções desenhados nos vários encontros no trabalho em saúde e nesta pesquisa interferência, em constantes tensões e disputas, que vamos produzindo práticas de pesquisa e de cuidado. Intensidades que se atualizam em enunciados e atos.

Palavras-chave


pesquisa; cuidado; trabalho

Referências


1. Gomes MPC, Merhy EE (Orgs). Pesquisadores IN-MUNDO: um estudo da produção do acesso e barreira em saúde mental. (Coleção Micropolítica do Trabalho e o Cuidado em Saúde) Porto Alegre: Rede UNIDA, 2014. 176 p.

2. Merhy EE et al. Rede de avaliação compartilhada (RAC) / Observatório nacional da produção de cuidado em diferentes modalidades, à luz do processo de implantação das redes temáticas de atenção à saúde no Sistema Único de Saúde: avalia quem pede, quem faz e quem usa. Relatório parcial de pesquisa. 2014.

3. Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec, 2002. 3ª Ed. Saúde em Debate 145, 189 p.

14. Tallemberg CAA. Passagens de uma prática clínico-política menor: tese-ensaio sobre o processo de desinstitucionalização do hospital psiquiátrico estadual Teixeira Brandão. Rio de Janeiro, 2015. Tese (Doutorado em Ciências) – Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.