Rede Unida, 12º Congresso Internacional da Rede Unida

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SEM LENÇO E SEM DOCUMENTO: A VIDA NAS RUAS DE MULHERES USUÁRIAS DE DROGAS
Márcia Rebeca Rocha de Souza, Jeane Freitas de Oliveira, Mariana Cavalcante G. Chagas, Raquel Miguel Rodrigues

Última alteração: 2015-11-23

Resumo


APRESENTAÇÃO: Este trabalho pretende discutir situações vivenciadas por mulheres em situação de rua que fazem uso abusivo de drogas. Para a maioria das pessoas a rua é um lugar público, é uma extensão que liga lugares para onde as pessoas se deslocam. É um espaço temporário, um local de passagem, que é de todos e é de ninguém. Quando a reflexão faz lembrar as pessoas que vivem nas ruas, o substantivo ninguém, não perde lugar, pois são os “joão-ninguém” e as “maria-qualquer” que habitam esses locais. Quando se fala de pessoas em situação de rua cabe ressalvar que existem diferenças marcantes do impacto de se viver na rua para homens e mulheres pelas complexas relações de gênero que se estabelecem socialmente. DESENVOLVIMENTO: Trata-se de uma pesquisa qualitativa, cujos dados foram coletados no período de outubro a dezembro de 2012, através de entrevistas semiestruturadas com sete mulheres usuárias de drogas atendidas em um CAPSad de Salvador. Este estudo está em conformidade com todas as exigências éticas e situa-se no âmbito do projeto intitulado “Vulnerabilidades de Mulheres Envolvidas com Álcool e outras Drogas”, financiado pelo CNPq, sendo também recorte de uma dissertação de mestrado. RESULTADOS: Os relatos das entrevistadas apontaram situações diversas que demonstram a complexidade da vida nas ruas, com condições diferenciadas de vulnerabilidade impostas para homens e mulheres pela relação de poder desigual entre os sexos. Quando a condição de estar na rua se soma ao gênero feminino, que se soma à condição de usuária de drogas, tem-se uma situação complexa, de difícil intervenção e manejo. Ser usuária de drogas significa carregar marcas sociais, estigmas que reduzem a pessoa a esse status, conforme mostra a fala abaixo. “As pessoas falam: ali! Lá vai a cachaceira beber, ali! Eles falam o xingamento pra mim não pro lado da droga, é mais pro lado da cachaça porque eles sempre me vêem mais “bêba” do que com os zoião de crack “(Florzinha). Na fala acima a entrevistada considera o estigma de usuária de álcool menos danoso, já que esta é uma droga com aceitação social, apesar de o uso abusivo ser condenado. Para as entrevistadas, os danos gerados pelo uso de drogas estão mais relacionados com sua condição de ilicitude e estigmas sociais do que com os efeitos propriamente ditos, conforme trecho abaixo.“E eu perdi a sociedade das pessoas, porque quase ninguém confia em quem é usuário assim, né? Quem usa crack pra eles é ladrão, é prostituta e nem sempre é assim, né? Eu não me acho uma pessoa má porque eu uso droga” (Florzinha).Estar na rua significa se expor. Não é possível disfarçar uma relação de uso abusivo de álcool, como seria para alguém com privacidade garantida em uma residência. Uma vez tendo sua vida e sua intimidade exposta na rua, com uma lógica de organização pessoal e social peculiar, pressupõe-se a complexidade e singularidade da atenção à saúde da população em situação de rua, em especial das mulheres. Os serviços de saúde que prestam assistência às mulheres em situação de rua poderiam acompanhar de forma mais próxima suas usuárias, seguir seus passos, conhecer onde dormem, como comem e com quem se relacionam, como se as usuárias pudessem ser suas "guias" para a construção de possibilidades terapêuticas.Quando se fala de mulher usuária de drogas, por exemplo, que esteja em situação de rua e com comorbidade psiquiátrica e necessidade de uso de medicação, a equipe de saúde que a assiste, muitas vezes, é capturada pela prática da medicalização do sofrimento dessa mulher. Caso a equipe não tenha um olhar ampliado sobre o caso, não faça uma escuta sensível, poderá gerar graves prejuízos ao invés de construir cuidado, como no caso em que ocorre violência sexual, explicitado no trecho abaixo.“Aproveitador! Porque uma pessoa que tá vendo uma mulher bêba, e fica querendo encarnar demais, se não for pra roubar é pra se aproveitar. Eu já fui muito roubada assim... Aproveitar... vai dormir na rua...”bêeeba”... aí na hora que você dorme, ele vai ali, dali já quer se aproveitar na rua mesmo”(Ninha). O álcool sendo uma substância depressora tem efeitos semelhantes a diversos medicamentos usados para tratamento de transtornos mentais. Segundo as entrevistadas, as mulheres em situação de rua, sem companheiro e sob efeito de substâncias depressoras como o álcool e/ou medicamentos tem maior risco de sofrer violência física e sexual. As mulheres trazem consigo as histórias que as formaram, que as instrumentalizaram e ensinaram como se relacionar. Muitas vezes o projeto de abandonar as ruas se reproduz como um abandono de si mesma, marcando sucessão de tragédias, e seguindo por um caminho que parece ter a morte como certeza iminente. A fala destacada abaixo aponta um adiamento da morte que, no caso dessa participante, se concretiza dois dias depois da realização da entrevista.“O carro matou ele bebo, atropelado... Eu também já fui atropelada um bocado de vez...Um bocado de vez depois que meu pai morreu. Mas não morri ainda, essas cicatrizes aqui no meu rosto foi tudo atropelo”(Ninha). A funcionalidade das drogas para quem mora nas ruas configura mais um ponto importante a ser destacado, principalmente no que se refere ao crack, que foi mencionado como substância de abuso por todas as participantes. Sendo uma substância estimulante, capaz de produzir respostas às demandas de quem está na rua, o crack deixa a pessoa em alerta e por isso se constitui numa droga funcional para quem está em situação de rua, sobretudo para as mulheres. “Pra mim o crack era melhor porque me deixava na ativa, na atividade! Vendo alucinações. E a maconha já me deixava lerda, querendo dormir, ai eu larguei a maconha! O crack deixa a pessoa em acesa, pronta para reagir. O povo aqui usa o álcool para tirar a dor, dar alegria e dar coragem para falar o que quiser e quando eu bebo na intenção de alguém, ah! Falo um bocado, falo tudo que eu não tenho coragem de falar pros outros, maltrato as pessoas. Você bem sabe, né? O tanto de coisa que já falei pra você...você bem sabe! (sorri)” (Florzinha). A vida nas ruas é uma vida de incertezas e paradoxal. Ao mesmo tempo em que se confluem sentimentos de liberdade, é permeada por sentimentos de aprisionamento, de vulnerabilidade, de falta de perspectivas. O lugar das pessoas que vivem nas ruas é sempre de um “não lugar” na sociedade,  ora de marginalização e de destituição dos direitos de cidadania, ora de exercício da produção da vida, mesmo no sofrimento. CONSIDERAÇÕES FINAIS: O estudo apresenta algumas cenas que podem ilustrar  parte da complexidade da vida de mulheres usuárias de drogas em situação de rua. A construção de uma rede de serviços formais e a "capacitação" de profissionais de saúde  parece não ser suficiente para o enfrentamento das questões colocadas. Mesmo sendo fundamental o processo permanente de educação nos serviços de saúde, os desafios colocados ultrapassam os "avanços" dos saberes técnicos estruturados. Talvez essa capacidade de produção de um "não lugar" num lugar, para além do uso abusivo das drogas, possa nos mobilizar a repensar nossas práticas diante da nossa vida e, principalmente, diante da vida do outro.

Palavras-chave


Gênero; Violência; Drogas; Saúde da Mulher