Rede Unida, 12º Congresso Internacional da Rede Unida

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Gênero, violência e uso de drogas: o que muda e o que se perpetua na vida de mulheres usuárias
Márcia Rebeca Rocha de Souza, Jeane Freitas de Oliveira, Mariana Cavalcante G. Chagas, Raquel Miguel Rodrigues

Última alteração: 2015-11-23

Resumo


APRESENTAÇÃO: A atenção à saúde requer, dentre outros aspectos, o conhecimento do contexto de vida das pessoas visando à construção de ações mais cuidadoras, no sentido da defesa da vida do/com o outro. A situação das mulheres usuárias de drogas é complexa e evidencia a necessidade de implantação de uma rede de serviços não apenas limitada à área da saúde. O cuidado à saúde das mulheres, em especial, exige que especificidades como as construções de gênero sejam consideradas, tanto no que diz respeito a aspectos relacionados à feminilidade e masculinidade, quanto aos aspectos relacionados à condição socioeconômica, raça/cor e geração. Este resumo é um recorte de uma pesquisa de mestrado vinculada ao Projeto - Vulnerabilidades de Mulheres envolvidas com álcool e outras drogas, financiado pelo CNPq. Trata-se de um ensaio cartográfico, cujo objetivo é descrever diferentes situações de violência que permeiam a trajetória de vida de mulheres usuárias de drogas. DESENVOLVIMENTO: O cuidado direcionado às pessoas que enfrentam problemas com o uso de drogas encontra lugar, para a maior parte dos casos mais graves, no Centro de Atenção Psicossocial álcool e outras drogas (CAPSad), dispositivo extra-hospitalar do setor secundário, onde os casos recebem uma atenção multiprofissional na tentativa de construção coletiva de planos terapêuticos complexos e de amplo alcance. Porém, podemos observar outras possibilidades do cuidar de si como possibilidade de (sobre)viver. Tais possibilidades passam pelos códigos de conduta "invisíveis" ou "indizíveis" que as pessoas em situações de rua, por exemplo, podem construir para si, podendo passar também pela construção de grupos específicos de uso compartilhado de drogas, grupos de apoio de ex-usuários, grupos religiosos ou artísticos, entre outros. A fim de dar visibilidade às situações cotidianas de mulheres que frequentam um CAPS-AD de Salvador-BA, foram entrevistadas sete mulheres usuárias deste dispositivo. Este número foi definido ao longo do desenvolvimento da pesquisa e todas as participantes assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da UFBA. As mulheres foram identificadas neste estudo a partir de nomes fictícios, preservando o anonimato das mesmas. Os dados foram produzidos por entrevista semiestruturada realizada em Salvador-BA, no período de outubro a dezembro de 2012. Tomamos como analisadores os enunciados produzidos nos encontros com as mulheres participantes. RESULTADOS: Os relatos das entrevistadas mostram suas trajetórias de vida marcadas por situações de violência. Algumas referiram presenciar atos de violência conjugal contra suas mães durante a infância, outras afirmaram sofrer agressões na infância e na fase adulta. Em todos os casos a violência era praticada por uma pessoa do sexo masculino, na posição de pai ou companheiro, o que demarca uma relação desigual entre os sexos, numa posição de "mais valia" do sexo masculino sobre o feminino. De acordo com os relatos das participantes, percebe-se que a violência se apresenta como um fenômeno geracional que ocorre em toda trajetória de suas vidas, de diversas formas, deixando marcas físicas, psicológicas e afetivas. A violência de gênero atravessa gerações, sendo reproduzida de formas muito similares. Durante sua entrevista, Florzinha apontou semelhanças entre a sua história e a história de sua mãe, que também fora usuária de drogas e sofrera violência física do companheiro. “Quem batia nela era um padrasto aí que ela me arrumou. Parecia até com Marcos, meu companheiro” (Florzinha). Há a representação do homem como agressor provável, indicando que elas esperam que ocorram atos violentos na relação com o gênero masculino. As falas abaixo ilustram esse posicionamento. “Tem mulher que fica agressiva também, mas o homem é mais forte. O homem já parte pra cima, já dá facada, dá pedrada e agente mulher é mais frágil, né?”(Florzinha) Enquanto usuária de substâncias como o crack, as mulheres também se expõem à situações de violência nas cenas de uso, como quando é contratada para acompanhar um homem durante o uso de drogas e para comprar drogas, servindo de “avião” (quem compra droga). Os resultados deste estudo apontaram diferenças de comportamento entre as mulheres que usam crack e as que usam álcool, como se o tipo de droga guardasse um lugar para quem a utiliza. Nos relatos de Lucinha, abaixo, é possível relacionar o tipo de droga utilizada e o lugar que ela ocupa num contexto de relações violentas. “Ele vinha me bater, eu não deixava aí rolava faca, rolava fogo. Teve uma vez que eu botei fogo nele, piquei ferro quente nele, já fiz cada coisa horrível com ele”. A usuária de crack marca uma mudança de posição da mulher, que deixa de ser vítima e passa a ser a agressora. Ela inverte a relação de poder e subjuga o homem, assumindo um papel diferente do habitual. A droga, no caso, funciona como “gatilho” disparador da violência como atitude de uma mulher que tem pouco ou nenhum recurso de defesa, que está isolada de sua rede social e que é vítima de diferentes tipos de violência de gênero por ser mulher, negra e usuária de crack. Ao se tornar abstinente, a mulher que usa crack perde seu lugar de usuária aos olhos do marido, e percebe uma mudança no comportamento dele, sinalizando que a visão que seu companheiro tem dela se relaciona com o uso que faz do crack. “Eu não sei porque ele está assim comigo. Agente tá brigando muito, briga mais, muito mais do que quando eu tava usando. Ele enche minha paciência, fica me xingando em casa. Engraçado que quando eu fumava crack ele não era assim (...) As vezes eu acho que ele tinha era medo de mim. Por isso não brigava tanto. Agora não. Agora  ele sabe que eu não tô usando e tá botando as asinhas de fora” (Lucinha). Nessa passagem fica clara a relação entre o uso do crack, o imaginário social que o acompanha e as relações que se estabelecem. Diante disso e para reforçar seu lugar na relação ela volta a reagir como de costume, apontando que mesmo sem a droga, essa mulher leva consigo o seu legado social, como se tivesse assumido as características que o imaginário social atribui à substância consumida. As mulheres que usam álcool neste estudo, por outro lado, responderam à violência da forma que é esperada para elas. As mulheres que usavam álcool de forma abusiva foram vítimas de agressões, ameaças e situações de coação, sendo subjugadas e submissas aos homens, de diferentes formas. CONSIDERAÇÕES FINAIS: Os enunciados das mulheres usuárias de álcool e crack apontam singularidades frente às situações de violência vividas associadas às diferentes cenas de uso. O reconhecimento das múltiplas formas de existência, não somente nas situações de violência e no uso de álcool e outras drogas, pode ampliar as possibilidades de produção de cuidado a essa população frente às complexas relações de gênero que permeiam suas vidas.     

Palavras-chave


Gênero; Violência; Drogas

Referências