Resumo
Esta apresentação é parte de um projeto realizado no Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente, da Fiocruz. Nosso intuito é analisar as diferentes perspectivas utilizadas nos discursos que visam dar suporte ao manejo tecnológico sobre o corpo intersexual e analisar a experiência da intersexualidade de forma a problematizar quais são as possibilidades desses sujeitos viverem uma vida boa e como os profissionais da saúde podem contribuir. O objetivo geral da pesquisa é oferecer subsídios para o desenvolvimento de linhas de cuidados integrais para os intersexuais e seus familiares de forma a garantir a integralidade, a equidade e o acesso aos serviços de saúde. Visamos propiciar a construção de saberes interdisciplinares e criar espaços participativos de desenvolvimento de competências para os cuidados integrais envolvendo profissionais e gestores da rede pública, pessoas intersexuais e seus familiares. Nosso interesse é ético e epistemológico. A dimensão ética é evidente, pois a intersexualidade exige daqueles que lidam com o problema uma tomada de decisão. A tomada de decisão é balizada por uma determinada compreensão do fenômeno da sexualidade e da forma de definição do sexo, o que nos remete à perspectiva epistemológica. Hermafroditismo é uma terminologia médica utilizada desde a antiguidade para designar os indivíduos que nasceram com órgãos sexuais ambíguos. A descoberta, no século XX, de que há inúmeras variáveis que supostamente determinam o sexo do indivíduo, fez com que a noção de hermafroditismo fosse repensada e optou-se pelo termo “intersexualismo”. A hegemonia do tratamento cirúrgico “para construir o sexo" iniciou-se na década de 1950, através da notoriedade do psicólogo norte americano John Money para quem as pessoas nascem com identidades neutras e o gênero e o sexo são construídos até os 18 meses. Deste prisma, o comportamento sexual seria resultado dos processos de socialização e não de um “instinto natural”. A ideia preconizada por Money da existência de uma “plasticidade de gênero” sustentava teoricamente a intervenção cirúrgica nos intersexuais nos primeiros meses de vida. Era uma forma de criar “corpos normais” o que, supostamente, evitaria sofrimentos futuros resultantes do estigma social sofrido pelos portadores de corpos que não alcançam a “inteligibilidade social”. A controvérsia é marcada por Milton Diamond que entendia que os hormônios pré-natais afetavam o desenvolvimento do cérebro, levando-os à “masculinização” ou “feminização” de acordo com a quantidade de andrógenos presente no período fetal. Durante a puberdade, os “mensageiros do sexo” ativariam comportamentos e características atribuídas a meninos ou meninas. O debate que é suscitado é referente ao que é mais decisivo para a identidade de gênero: a socialização ou a biologia. Na década de 1990 três fatores fragilizaram o Protocolo Money: um artigo de Diamond questionando a hipótese de Money; a fundação de uma organização política IntersexSocietyof North America, cujos ativistas afirmam complicações em suas vidas sexuais decorrentes das operações realizadas na infância e a produção de trabalhos das ciências sociais que mostravam o caráter de prejuízo e de contingência puramente histórica da norma social em que se assentava o protocolo Money. Em 2006 é criado o Consenso de Chicago que transforma a modalidade de tratamento e recomenda o uso da nomenclatura Desordem do Desenvolvimento Sexual. No início de 2015 foi aprovada na República de Malta uma lei em que a cirurgia é proibida até que os próprios intersexuais optem pela mesma. Vejamos os principais pressupostos epistemológicos dos discursos contemporâneos nos campos médico, psicanalítico e sócio-antropológico que incidem sobre a intersexualidade. Percebemos que o discurso biomédico atual se pauta na ideia de existência de dois sexos, de diferença sexual e de uma identidade sexual rígida. Entende-se que há algo como uma identidade sexual incontestável e que em casos em que a identidade não está bem definida, estamos diante de um distúrbio que é uma “urgência biológica e social”, como referida na Resolução 1664, de 2003, emitida pelo Conselho federal de Medicina. Entende-se que há algo material que diferencia homens de mulheres e este algo está no corpo. É o caso da teoria dos hormônios pré natais citado. Entende-se que o corpo é anterior à inscrição cultural, isto é, que haveria uma materialidade anterior à significação e à forma. Ademais, no discurso biomédico, vemos uma relação direta entre a identidade sexual e a orientação sexual. Nesta concepção há algo como uma heterossexualidade idealizada e compulsória, como nos diz Butler. No campo sócio antropológico o principal movimento é a desnaturalização da diferença entre os sexos. Segundo Laqueur, o modelo dos dois sexos foi uma construção do século XIX. A medicina ocidental do século XVIII pautava-se no modelo do sexo único, inspirado na filosofia neoplatônica de Galeno, que via a mulher como um homem invertido e inferior. Nos fins do século XVIII, era preciso justificar a tradicional desigualdade entre homens e mulheres de modo a torná-la compatível com os ideais igualitários republicanos. O discurso dominante era da diferença biológica das mulheres que as tornava incapazes para exercer as tarefas intelectuais, científicas e políticas dos homens. O modelo dos dois sexos se torna hegemônico. Laqueur nos mostra que as noções de "diferença biológica de sexo" e "diferença cultural de gêneros" não são dados neutros que se impõem à consciência dos cientistas; são ideias informadas por crenças científicas, políticas, filosóficas e religiosas. Problematiza-se o primado da anatomia como lugar que anuncia a sexualidade ou a “verdade dos sujeitos” e se afirma a possibilidade não normatizadora de corporalidades. O movimento Queer coloca em xeque as formas correntes de compreensão das identidades sociais e se apresenta como um contraponto em relação à ideia hegemônica da inevitabilidade de pensar o sexo como dicotômico. A noção de diferença sexual é radicalmente negada e se fala em diluição da identidade sexual. No campo psicanalítico, por sua vez, pouco fala sobre intersexualidade. O campo começou a se interessar pelos intersexuais influenciados pela corrente feminista que ao longo das últimas décadas vem discutindo e problematizando a relação homem-mulher e a militância pela igualdade entre os sexos. Para a psicanalise é impossível assentar o discurso das diferenças sexuais sobre uma certeza ontológica. Para alguns, Freud busca nos corpos as evidências de uma diferenciação, mas para a psicanalise, feminino e masculino são diferenciados não em razão do real de seus corpos, mas por aquilo que se pode elaborar a partir deles. A psicanalise não abre mão da diferença sexual, como querem os ativistas do movimento Queer. Se masculinos e femininos são igualados em sua condição desejante, por outro lado eles se relacionam por meio do filtro de suas fantasias e jamais se complementam. Homens e mulheres são seres de linguagem e cultura e os gêneros são efeito de práticas discursivas, independentes da anatomo-fisiologia do sexo. É verdade também que se pode interpretar o modelo freudiano da diferença sexual como uma volta ao modelo de sexo único anterior ao iluminismo: uma única energia, a libido, um único significante inconsciente para o desejo, o falo, constituindo subjetividades diferentes a partir da elaboração da mínima diferença, inscrita nos corpos dos sujeitos, como nos diz Kehl. É interessante aproveitar esses diferentes discursos e as pesquisas empíricas sobre a experiência da intersexualidade para debatermos sobre a necessidade da cirurgia precoce em crianças que nascem com genitália ambígua, além do manejo terapêutico social para esta população.
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