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“Fui muito massacrada na minha gravidez”: trajetória da produção do cuidado de uma gestante vivendo com HIV/aids
Última alteração: 2016-01-06
Resumo
APRESENTAÇÃO: Embora as Redes de Atenção à Saúde (RAS) normatize as práticas de cuidado integral no campo materno-infantil por meio da Rede Cegonha (RC), no entanto, o cuidado produzido pelas gestantes que vivem com HIV/AIDS escapa e desvia da rede protocolar tecendo outras articulações a partir do seu território existencial. A cartografia é tecida com uma multiplicidade de linhas emaranhadas no processo de subjetivação destas mulheres que vivenciam no próprio corpo as normatizações de gênero, a maternidade, a vida com o HIV/AIDS, o estigma, o imperativo moral de ser uma mulher com doença associada à sexualidade. O mapa é marcado por encontros entre profissionais de saúde autorizados a praticar o cuidado, a família e a comunidade religiosa a qual a usuária está imersa, no meio. Estes encontros produzem descontínuos e desmontagens da representação e identidade em processo ininterrupto. A experiência de um mapa existencial que se desterritorializa e reterritorializa sempre em movimento desmonta qualquer análise que se proponha linear e amparada em retificações identitárias. A mulher vivendo com HIV/AIDS se agencia com estes sujeitos e afecções no território que pratica e inventa no seu cotidiano. Estes encontros, todavia, produz tensionamentos na medida em que a não submissão da usuária à normatização protocolar dos autorizados a exercer o cuidado, como também, ao imperativo moral atuantes com a família e a religião gera processos de contenção da singularidade destas mulheres no mapa existencial. A produção do cuidado está imersa em redes vivas que agenciam linhas molares (legislações, normas, recomendações técnicas) e linhas moleculares (relações, encontros, singularizações). OBJETIVOS: O objetivo da pesquisa consiste em mapear a redes vivas da produção do cuidado de uma gestante vivendo com HIV/AIDS. METODOLOGIA: Trata-se de uma pesquisa qualitativa de orientação cartográfica com análise baseada nas vertentes pós-estruturalistas de autores como Gilles Deleuze, Félix Guattari e Michel Foucault. O conceito de biopolítica como submissão da população ao saber da epidemiologia e da medicina submetem os corpos ao “fazer viver” estatal. Hoje, há uma normal autorizada pela racionalidade que gera saúde e que a população deve se submeter para o bem viver com saúde. A pesquisa se realiza a medida que se traça juntos, pesquisador e usuária guia, os caminhos percorridos para dar conta de um problema que força o pensamento: o caso complexo na produção do cuidado. A usuária guia é eleita como caso complexo de difícil manejo na produção do cuidado materno-infantil em mulheres que vivem com HIV/AIDS. A eleição é realizada pelos pesquisadores em segunda fase após a exposição de vários casos considerados complexos pelos profissionais de saúde e gestores da RC em oficinas coordenadas por um grupo de pesquisadores. A partir da eleição inicia-se a confecção da cartografia acompanhando os sujeitos que se encontram na produção do cuidado. Os sujeitos que compõem esta pesquisa são Flavia, usuária guia (vive com HIV/AIDS); Nivia, Agente Comunitária de Saúde (ACS); Alessandra, Enfermeira da Unidade Básica de Saúde (UBS); Jorge, esposo da Flavia; Helio, médico de família e comunidade; Eric, médico pediatra e Diego, pesquisador. Os nomes são fictícios, exceto do pesquisador. Foram realizadas entrevistas observando os princípios éticos, leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). As técnicas de produção dos dados consistem em entrevistas registradas em áudio e transcritas, visitas aos territórios de atuação dos sujeitos e registros em caderno de campo das impressões. Este trabalho é oriundo de pesquisa nacional denominada “Observatório Nacional da produção de cuidado em diferentes modalidades à luz do processo de implantação das redes temáticas de atenção à saúde no sistema único de saúde: avalia quem pede, quem faz e quem usa” com parecer 560.597 de 23/03/2014. Flavia, 29 anos, casada, evangélica, três gestações, conheceu sua sorologia reagente para HIV desde o ano de 2009 na primeira gestação no pré-natal. Reside na periferia de Fortaleza sem emprego fixo e é beneficiária do Programa Bolsa Família (BF). Perdeu a primeira filha na maternidade pública no momento do parto, refere-se a negligência médica. A segunda nasceu em hospital privado quando dispunha de plano de saúde devido o emprego formal. O terceiro foi acompanhado por profissionais da atenção primária e nasceu na maternidade pública em 2013. RESULTADOS: Nos três casos não houve uso sistemático de antirretrovirais e houve a realização da amamentação. Os profissionais da Atenção Primária em Saúde (APS), na terceira gestação, não sabiam lidar com a negativa em fazer uso do tratamento antirretroviral para o HIV/AIDS e o desânimo da usuária em ter que frequentar as dependências da UBS. Flavia professa religião neopentecostal e acreditava-se curada da infecção pelo vírus HIV na vivência da sua fé. Relatou testemunho de cura da infecção observada por membros da sua comunidade religiosa e em narrativas na internet. O fato de crer-se curada a afastava dos cuidados na APS, afinal como estava assintomática não havia necessidade de tratamento. Os profissionais da APS realizaram exames de HIV nos filhos e esposo sem o consentimento dos mesmos para sondar uma possível infecção. Sofreu denúncias ao Conselho Tutelar por negligência no tratamento do terceiro filho e ameaças de denúncias de retirada de benefício do BF como prática dos profissionais da APS por negar o cuidado protocolar preconizado pela RAS. A usuária porta os exames dos filhos que confirmam a sorologia não reagente para HIV e alega que foi muito massacrada no período da gestação. O esposo não lida bem com o fato de a Flavia viver com HIV/AIDS o que gera conflitos sistemáticos. Como considerações finais a confecção desta cartografia aponta o desconforto dos profissionais da APS e da usuária diante das situações que destoam da norma preconizada em legislações e da moral hegemônica que julga a vida. Este desconforto gera práticas de microfascismos que negam a vida. CONSIDERAÇÕES FINAIS: Os espaços de cuidado formais, em outras palavras, os serviços de saúde afastam os usuários por não compreender as singularidades dos corpos na produção do cuidado. Por outro lado é legítimo o investimento da usuária em espaços que a afetem, que a impulsionem na afirmação da vida. A produção da vida, que repercute no cuidado, extrapola os territórios esquadrinhados que almejam corpos dóceis e capturáveis pela serialização. Uma rede que se propõe de cuidados problematiza a multiplicidade e a diferença permitindo os fluxos de singularidade dos sujeitos: profissionais de saúde, usuária, familiares e comunidade no mapa existencial.
Palavras-chave
Produção do Cuidado; Gestante; HIV/aids