Rede Unida, 12º Congresso Internacional da Rede Unida

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Acompanhamento Terapêutico (AT): tecendo redes de afeto e de cuidado em saúde mental
Vera Lúcia Pasini

Última alteração: 2015-11-23

Resumo


Esta é a história de Rita, contada não por ela mesma, mas por pessoas de diversas equipes que acompanharam, em algum espaço de tempo e/ou lugar, alguns de seus itinerários pela cidade de Porto Alegre e arredores. Como toda narrativa, que representa uma seqüência de acontecimentos interligados, onde a atenção maior está em tramar os fios de memórias, acontecimentos e experiências compartilhadas de cuidado em saúde mental, sem necessariamente respeitar uma ordem cronológica ou buscar uma “moral da história”, esta ainda tem mais uma particularidade: Rita não será narradora direta. Nós – grupo que decidiu registrar e compartilhar esta história – vamos cuidadosamente formatar esta bricolagem a partir de relatos, analise de documentos e memória. É possível que alguns acontecimentos narrados não sejam “fiéis a realidade”, quem vai saber ao certo? E talvez isto tampouco importe, considerando que a própria Rita - misturando seu delírio, suas razões e seus medos – às vezes se define enquanto esposa, mãe ou cigana. Uma de cada vez, todas ao mesmo tempo, nenhuma delas em outros momentos. Conhecemos Rita como “peregrina”, vivendo itinerante entre diferentes espaços da cidade. Em suas itinerâncias, busca viver sua vida autônoma, próxima das pessoas as quais se vinculou no seu percurso pela vida. É assim que ela se apresenta quando, após um período de “andanças por terras distantes” – nos caminhos entre a casa de seu pai em Gravataí e as casas de alguns dos seus nove irmãos –, regressa invariavelmente para sua “terra Santa”: o terreno onde vive seu ex-marido e a família extensiva (ex-sogra, ex-cunhada), lugar onde, apesar da precariedade em que vive, encontra seu “porto seguro”. Em seus encontros com os diferentes trabalhadores de saúde que tentam cuidar dela, de diferentes maneiras, apresenta seus desejos: uma casa, uma família... Em uma primeira tentativa de resposta, nós, fazemos o que bem sabemos fazer: oferecemos tratamento (e não cuidado), insistimos que tome medicação, que faça exames, que se vincule a uma Unidade de saúde. Mas ela nos desafia a buscar mais! Exige que, possamos “aquietar” a nossa “fome de tratar”, nosso “furor curandis” para escutar e observar – para aprender! – a partir dos seus movimentos pela vida e pelo imaginário, novas práticas de cuidado em saúde. Freud já nos alertava dos riscos dessa nossa excessiva necessidade de “curar” os pacientes de seus sintomas sem dar ouvidos ao que ele/a quer. Muitas vezes esse é o nosso desejo, eliminar os sintomas, mas será que é também daqueles que nos propusemos a cuidar? Para nossa pergunta sobre: o que sentes? onde dói? Rita pede um bloco de notas e caneta: quer registrar coisas, anotar pensamentos. Rita parece nos apontar os tempos difíceis em que vivemos, onde o tempo é curto, passa rápido e as pessoas não podem “perdê-lo”, “gastá-lo”, com um olhar e uma escuta mais demorada para com o outro! Mudar o ponto de vista! Esse é o desafio. Não é ela quem precisa se aproximar da “turma toda” – que neste momento do processo soma mais de 20 pessoas, entre equipes da Atenção Básica, CAPS, Apoio Matricial, Assistência Social, Judiciária. Porém, a inquietude de aceitar o modo de viver de Rita leva alguns profissionais a avaliar que uma internação compulsória é a intervenção a ser feita, o que não é aceito por todo o grupo. Para onde seguir? A única certeza era de que o caminho que escolhemos não era o melhor – e isto, diariamente Rita nos avisava (com sua agitação, gritos, “sumiços”, andanças...).  E se, em vez de decidir por ela, somente a seguíssemos? Ou melhor, a acompanhássemos? Entra em cena a aposta de o Acompanhamento Terapêutico (AT) como protagonista deste cuidado. Assim nos deixarmos “andarilhar” pela cidade, acompanhando Rita e seus devaneios. Processo delicado de aproximações cuidadosas nas quais ela hora deixa ficar, hora some, hora resiste... O caminho vai se fazendo ao andar e, em uma caminhada de quase duas horas pela zona norte de Porto Alegre, Rita fala da história de sua vida e de desejos (quis parar em um prédio para se informar sobre o apartamento que estava para alugar. Rita quer ter uma casa que seja sua e adequada para viver). Alguns delírios também estiveram presentes e ganharam novas formas no seu caminhar. O seu habitar pela cidade a transforma e é por ela transformado. Nessa circulação, Rita aproveita o que pode do território: caminha observando e recolhendo coisas que lhe interessam e reaproveitando objetos e comidas que outras pessoas jogaram fora e vai percebendo sua acompanhante terapêutica (at) de maneira diferente, não mais como alguém que estava ali para saber o que ela precisava ou para controlá-la, mas como alguém que estava acompanhando-a em seu percurso. Produz-se então um desvio, abre-se uma fresta para o exercício de um cuidado que considere desejo de Rita. No decorrer dos ATs Rita traz queixas de saúde: fala de infecção urinária, dente infeccionado, osteoporose... Refere que tenta ir à unidade de saúde ou ao hospital e não é atendida na maioria das vezes, pelo menos não de acordo com sua necessidade. Mas, em um determinado tempo, ou melhor, no seu tempo, pede por um acompanhamento médico, também pede por uma internação... Uma internação para “descansar a cabeça” e tratar de seus problemas clínicos. Entende esta internação como algo muito diferente daquelas dos hospitais psiquiátricos, para as quais foi levada enrolada em um lençol e carregada pelo ex-marido. A “turma” volta a discutir a internação, mas agora pelo desejo de Rita, para construir estratégias de um trabalho que possa dar sustentação ao desejo de cuidado. Telefonemas e conversas com os gestores dos serviços para “driblar” as regras prescritas para organizar os fluxos e pouco atentas às singularidades, e vai se tecendo uma rede entre os serviços (que também é tecida com os fios dos afetos) com a qual apostam que Rita se sinta amparada. No dia combinado para a internação, a at foi até Rita e juntas foram até o hospital, de ônibus, apresentando-se com lenço e maquiagem. Lá, foram recebidas por profissionais que conversaram com ela de forma bastante sensível e acolhedora, assegurando-se de que ela compreendia a situação. Rita, sempre fugindo da pressão de um tempo que não é seu, que lhe é imposto, até então não havia aceitado os tratamentos propostos. Nesse momento, percebendo que o tempo era de mudanças, aceitou o que lhe foi sugerido. Foi preciso delicadeza e espera - tardança, respeito ao seu tempo e sua dança -, para que ela pudesse começar a demandar cuidado. Foi preciso também muitas reuniões da rede de serviços que pretende cuidá-la, para que os profissionais se dessem conta que tinham que escutá-la em seu desejo, não colocando nossa “vontade de estabilidade” em seu lugar. A internação de Anita contou com o empenho de trabalhadores de várias equipes para que pudesse significar acolhimento e não recolhimento. Constituiu-se uma experiência singular, que merece ser narrada como inspiração a outras situações em que uma internação pode ser tomada como dispositivo de cuidado potente para um momento de vida, e não como condição de vida.