Rede Unida, 12º Congresso Internacional da Rede Unida

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Se você quer prender, não é seguro: problematização da medida de segurança e da internação compulsória de pessoas em sofrimento psíquico
LUANA DA SILVEIRA, Ana Isabel Pereira Moreira, Carolina Cordeiro Gonçalves, Isabella Bittar, Leniara Barreto, Jéssica Pereira Silva, Patrícia Durans, Vitor Duncan Marinho

Última alteração: 2015-10-22

Resumo


O presente trabalho possui como objetivos a problematização da aplicação da Medida de Segurança (MS) reduzida à internação, assim como o questionamento sobre a construção do discurso que embasa esse tipo de prática, tendo-se como base a perspectiva foucaultiana, e usando-se como casos analisadores o caso de Almerindo, relatado no documentário A Casa dos Mortos (DINIZ, 2009), e o discurso sobre o “louco criminoso” produzido pela psiquiatra no documentário “Crônicas (Des) medidas” (ALVAREZ, 2014). A MS é uma sanção prevista pelo Código Penal Brasileiro para casos em que o autor do delito é considerado doente mental incapaz de entender o caráter ilícito do ato ou determinar suas ações. A partir da criação do Código Penal de 1940, a periculosidade passa a ser o motivo da execução da medida de segurança, como forma de proteger a sociedade daquele que “é perigoso”. Esta medida é prevista no Código Penal Brasileiro para casos em que o autor do delito é considerado “doente mental” e incapaz de entender o caráter ilícito do ato, sendo classificado como inimputável e não passível de pena, substituindo-se a pena pela aplicação da medida de segurança que institui o tratamento obrigatório. Apesar de o tratamento ambulatorial ser uma das determinações possíveis para o cumprimento da medida, na maioria das vezes, é determinado que seja cumprida através da internação em Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico. Instaurado o incidente de insanidade mental o acusado é encaminhado ao Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) para exame médico-legal, que normalmente acarreta internação compulsória de longo prazo. Nesse aspecto, de acordo com Foucault, o discurso psiquiátrico em matéria penal tende a possuir um caráter muito mais moral que técnico-científico pautando-se em uma visão do louco como um “monstro perigoso”. A presença da periculosidade ligada à figura do louco faz com que o efeito do delito cometido por este seja potencializado e visto como justificativa para que este seja afastado do convívio social, atribuindo-lhe vários comportamentos "anormais". Esta problemática também é feita por Canguilhem (1966), que ao contrapor o modo de pensar da medicina de sua época, entendia a “doença” como produtora da perda de funcionalidade individual. Mesmo que esse comportamento “anormal” pudesse estar correlacionado à causa e efeito de um comportamento, por ser singular a cada indivíduo, impossibilitaria a causa do mesmo efeito em todos, tornando ilógica e reducionista a generalização. Segundo dados coletados pelo Senso, em 2011, 63% dos internos no HCTP Heitor Carrilho (RJ) que estavam em MS não deveriam estar internados, assim como ocorre com Almerindo, que pelo delito de lesão corporal leve, em 1981 foi internado no HCTP para realização de laudo psiquiátrico, realizado 6 meses depois, e foi sentenciado a cumprir 2 anos de MS após 3 anos de internação, permanecendo ainda em 2008, ano do documentário. Dessa forma, considerando que Foucault chama de controle da virtualidade, do comportamento que o sujeito pode vir a apresentar, percebe-se que o período das internações passa a ter tempo indeterminado, já que a medida de segurança não atua somente como uma penalidade pelo delito cometido, mas, sobretudo, para o controle e segurança social, e só será extinta quando houver um laudo psiquiátrico, atestando a cessação da periculosidade do interno. A internação compulsória de pessoas em sofrimento psíquico autoras de delitos viola diversos princípios da Constituição, como o da razoabilidade do prazo processual e o da proibição de penas cruéis ou de caráter perpétuo, assim como contraria a Lei nº 10.216. Vale ressaltar que práticas como essas são mantidas por discursos morais que, como aponta Foucault, conseguem englobar em si as características de serem, ao mesmo tempo discursos de: poder, porque interferem diretamente sobre a vida de alguém; verdade, devido a legitimidade gerada pela figura que os produz e que fazem rir por seu caráter moral e pouco científico. Assim como o discurso produzido pela psiquiatra em questão que revela uma tendência em tratar o paciente por esse “monstro” construído por um misto de: a) aspectos morais, onde se ressaltam questões religiosas como exemplos de seu comportamento “nefasto”; b) um raso conhecimento científico, evidenciado quando se coloca uma autodepreciação e exclusão da sociedade como formas de tratamento; c) ignorância de uma individualidade, verificado quando se afirma que “todos de seu tipo” são iguais e; d) ênfase na impossibilidade de redenção, quando se diz que o paciente não responde ao tratamento e deve ser isolado. É através da criação da figura do “louco perigoso” que a psiquiatria se legitima, passando a subsidiar o poder judiciário, tendo em vista, a sua suposta competência referente à determinação do “grau” ou mesmo da existência de periculosidade ou de sua cessação. Devido ao status atribuído à psiquiatria de saber científico sobre a loucura e ao direito de um saber sobre a conduta legal, quando proferido por um psiquiatra, esse discurso é tomado como científico e quando usado por um juiz é dado como correto. Sendo assim, a aliança destes aparece para sociedade e ganha status de verdade inquestionável. Vale ressaltar que é justamente a produtora desse discurso a responsável por dar o veredito sobre o caso. Casos como esses mostram como a análise de Foucault, 40 anos após suas aulas, é atual e o discurso ainda é perpetuado por alguns profissionais de saúde mental, com efeitos gerados em medidas aplicadas em relação a pessoas em sofrimento psíquico em conflito com a lei, acreditando-se serem esses a matriz de diversos preconceitos, e que são os mesmos a base para medidas de isolamento e dificuldades para inclusão, até mesmo na rede substitutiva. Se a medida de segurança frequentemente acarreta internação compulsória e os HCTP´s não oferecem efetivamente o tratamento obrigatório instituído por ela, por que não determinar que seja cumprida em tratamento na rede de atenção psicossocial? A reforma psiquiátrica brasileira avança a passos lentos no que diz respeito ao “louco infrator”, sendo preciso questionar a aplicação da medida de segurança e a necessidade de um dispositivo como o HCTP para que se possa discutir o fim dos manicômios judiciários como parte necessária na efetivação desta reforma. Tais práticas desafiam o campo da saúde mental coletiva a produzir intervenções jurídico-políticas e socioculturais, para além das teórico-conceituais e técnico-assistenciais, como aponta Amarante (2000), para o que a formação-intervenção tem papel fundamental na transformação dos modos de saber e lidar com a loucura.

Palavras-chave


medida de segurança, internação compulsória, saúde mental, direitos humanos

Referências


 

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