Rede Unida, 12º Congresso Internacional da Rede Unida

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O potencial analisador de uma usuária-guia: um estudo sobre a produção do cuidado
Daniel Emílio da Silva Almeida, Roseli da Costa Oliveira, Danielle Costa Capistrano Chaves, Mônica Garcia Pontes, Ricardo Luiz Narciso Moebus, Vinícius Lana Ferreira, Maria Dajuda Luiz dos Santos

Última alteração: 2015-11-23

Resumo


APRESENTAÇÃO: Os debates relativos às Redes de Atenção à Saúde frequentemente nos aproximam de discussões voltadas a análises mais clássicas de estruturação de fluxos formais entre níveis hierárquicos de serviços ou das redes temáticas (Psicossocial, Cegonha e etc.), como observamos nos fluxos estruturantes de diversas normativas publicadas pelos órgãos gestores do SUS. Este resumo se propõe a apresentar uma pesquisa com uma perspectiva diferente, que tem como esforço pensar a constituição de redes de atenção à saúde a partir do acompanhamento de uma usuária-guia moradora de Belo Horizonte. O estudo é integrante de pesquisa do “Observatório Nacional da Produção de Cuidado em diferentes modalidades à luz do processo de implantação das Redes Temáticas de Atenção à Saúde no Sistema Único de Saúde: Avalia quem pede, quem faz e quem usa”, pelo núcleo Minas Gerais. O objetivo geral do estudo é avaliar o processo de produção do cuidado nas redes temáticas do SUS (Merhy, 2013). DESENVOLVIMENTO: Partindo da concepção de que o cuidado é centrado nas tecnologias leves e que todo usuário, assim como os trabalhadores, são patrimônios de saber e devem ser considerados com simetria na produção do cuidado, nos direcionamos para uma pesquisa que se esforça em considerar o processo de cuidado abordando singularidades e, destas concepções, analisamos e processamos os ruídos decorrentes desta aposta ético-política e da potencialização dos processos de cuidado (Merhyet al, 2014). Como construção metodológica da pesquisa, utilizamos os “usuários-guia”. Estes usuários levaram-nos pelos caminhos produzidos por si na busca de soluções para os seus problemas de saúde. Nesse processo é possível identificar dificuldades tanto do próprio usuário no acesso aos serviços como das próprias equipes, seja na sua organização interna ou na relação com outras equipes de outros serviços ou ainda outras políticas sociais (Merhyet al, 2014). Nessa perspectiva, ultrapassamos a produção do cuidado apenas nas redes institucionais/formais e nos aproximamos da construção das redes existenciais dos usuários. Observamos desejos, perspectivas de mundo, vínculos e todo um universo de conexões que nos permitiram reconhecer tensões existentes na produção do cuidado por dentro das redes formais dos serviços de saúde. Desta forma é que o usuário-guia ultrapassa e vai bem além da construção do caso clínico, mesmo de uma ideia de clínica ampliada. A partir desta construção metodológica, seguimos pela produção de vários analisadores para o processo de cuidado da própria rede (Abrahão et al, 2013). Descreveremos abaixo a história de MS, uma senhora que exigiu muito da rede, e, mesmo hoje, em uma situação mais estabilizada, traz muitas riquezas capazes de guiar a construção de reflexões sobre a produção do cuidado nos serviços de saúde. RESULTADOS: A Senhora MS tem 68 anos. Ela é solteira, sem filhos, possui suporte familiar frágil havendo algum contato com uma irmã e um sobrinho. Morava sozinha e encontrava-se em acompanhamento num Centro de Saúde (CS) que conta com suporte matricial de psiquiatra, assistente social e farmacêutico, e no Centro de Referência em Saúde Mental (serviço equivalente ao Centro de Apoio Psicossocial III). Era acompanhada anteriormente por outro CS, entretanto não apresentava histórico. MS apresentava alterações do humor, sintomas inespecíficos, grande resistência à pactuações e falta de organização em o seu processo de auto-cuidado. Frente aos entraves relacionados ao projeto terapêutico da usuária, a equipe do CS opta por buscar suporte à usuária por meio de serviços da Assistência Social. A ESF aciona a Secretaria de Assistência Social para inserção da usuária em um programa que oferecia suporte especializado para família e indivíduo.  Não obteve êxito, visto que este era voltado para indivíduos em privação de direitos, critério avaliado como não preenchido pela usuária. Nesse momento a equipe do CS busca outro programa com oferta de cuidadores. Entretanto, novamente ouve insucesso, já que a usuária não residia em uma área classificada como de alta vulnerabilidade. Como alternativa, a usuária passou a ser acompanhada com maior intensidade por uma agente comunitária de saúde (ACS). Apresentando vários episódios de hipotensão, a senhora M.S. sofreu uma síncope e foi internada, sem apresentar referência familiar para acompanhamento. Nesta ocasião foi realizada a primeira solicitação de institucionalização, indeferida e vista com resistência pela usuária. Em meio a estas dificuldades, o quadro se agravou e a usuária foi encontrada emagrecida, com confusão mental importante, com a casa em estado de conservação precária, sendo a ACS orientada pelo médico de referência a contatar o SAMU, verificado o risco iminente de morte. Tal situação culminou em nova solicitação de institucionalização que foi deferida e levou a usuária a se mudar. Neste momento, os pesquisadores, já de posse dos relatos da usuária, conheceram a Senhora MS, surpreendendo-se. Esta parecia outra pessoa. Estabilizada, animada, cheia de desejos. Não estava arredia ou agressiva, como descrita. A equipe de saúde que acompanhou os pesquisadores alertou-nos sobre um assunto proibido: família. Entretanto, no encontro, esse parecia ser o assunto predileto da Senhora MS. Seus relatos sobre religiosidade eram intensos. Apesar da felicidade na instituição onde morava, aspirava outro lar, onde pudesse viver sua religiosidade, ter maior abertura para conviver com o mundo. Com a institucionalização, Senhora MS mudou mais uma vez de área de abrangência. Verificamos que seu histórico era pouco conhecido. Algumas de suas demandas por saúde perderam referência dentro da rede. CONSIDERAÇÕES FINAIS: Podemos observar, com a descrição da usuária-guia, vários analisadores da rede. Uma usuária que mudava de área de abrangência, sem histórico, sem um detalhamento de seu caminho pela rede, com a perda de seu caminhar clínico, de vida e vínculos. A Senhora MS não se encaixava na carteira de serviços, mesmo que apresentasse demandas importantes com evolução rápida para piora. Sua vida não cabia em protocolos. Uma usuária cheia de desejos e aspirações pulsantes, mas que, no cotidiano dos serviços, não se apresentavam como demandas importantes para construção de seu cuidado. Observamos que, apesar de o município apresentar ofertas de diversas redes estruturadas, regionalização de suas atividades e diversos serviços com fluxos preestabelecidos, algo pareceu fugir do processo de cuidado. Não haveria espaço para demandas singulares da usuária? O que fazer com seus desejos e anseios de vida? Tornou-se evidente a necessidade de uma valorização maior de toda a construção de vida da usuária pela rede, dos processos de mudança, dos pontos que foram discutidos com as equipes de saúde a respeito de seu processo de cuidado. Rapidamente, observamos vários movimentos. Mesmo em outra área de abrangência, sua antiga equipe passou a se movimentar para se aproximar da usuária em sua nova área de abrangência. Outros tipos de moradia, que considerassem a religiosidade da usuária, passaram a ser consideradas. Discussões sobre o enrijecimento de certos programas e serviços da rede ganharam força. Tivemos a oportunidade de visualizar que o processo de avaliação da rede produziu substrato para reconfigurações de processos de trabalho. Considerando todos como sabidos e buscando uma maior permeabilidade perante a usuária, imundizando-se com seu mundo, tivemos a oportunidade de fomentar a autoanálise de vários temas/situações problema pela rede (Abrahão, 2013). Buscamos trazer com maior intensidade a produção do cuidado para a organização dos serviços de modo a potencializar o próprio cuidado oferecido aos usuários, um exercício que se mostrou potente na reconfiguração dos processos de trabalho e para a produção do conhecimento em saúde (Merhy, 2015). 

Palavras-chave


Micropolítica do trabalho; cuidado em saúde; avaliação de serviços de saúde; educação permanente; redes de atenção à saúde

Referências


ABRAHÃO, A. L. ; MERHY, E. E. ; CHAGAS, M. S. ; GOMES, M P C; SILVA, E. ; VIANNA, L. . O pesquisador in-mundo e o processo de produção de outras formas de investigação em saúde. Lugar Comum (UFRJ), v. 39, p. 133-144, 2013.

MERHY, E.E.; FEUERWERKER, L. M. ; SILVA, E. ; GOMES, M. P. C. ; SANTOS, M. F. L. ;CRUZ, K. T. ; FRANCO, T.B. Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Divulgação em Saúde para Debate, v. 52, p. 153-164, 2014.

MERHY, E.E. Educação Permanente em Movimento - uma política de reconhecimento e cooperação, ativando os encontros do cotidiano no mundo do trabalho em saúde, questões para os gestores, trabalhadores e quem mais quiser se ver nisso. Saúde em  Redes, v. 1, n. 1, p. 7-14, 2015.

Relatório Final do projeto de pesquisa: A produção do cuidado em diferentes modalidades de Redes de Saúde, do Sistema Único de Saúde. Avalia quem pede, quem faz e quem usa. Coordenação Geral: Emerson Elias Merhy. SAS-MS, outubro de 2013. Brasília.