Rede Unida, 12º Congresso Internacional da Rede Unida

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Três categorias de serviços na rede de atenção psicossocial: acesso ou barreira ao cuidado integral?
Gabriela Lucena de Oliveira Coutinho, Adelle Conceição do Nascimento Souza, Thayane Pereira Santos, Juliana Sampaio, DILMA Lucena de Oliveira

Última alteração: 2015-11-23

Resumo


Esse trabalho é um recorte da pesquisa em andamento - “Observatório Nacional da Produção de Cuidado em diferentes modalidades à luz do processo de implantação das Redes Temáticas de Atenção à Saúde no Sistema Único de Saúde: Avalia quem pede, quem faz e quem usa” e, está sendo desenvolvida pela Universidade Federal da Paraíba-UFPB e em várias cidades brasileiras, sob coordenação da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, com o objetivo de avaliar a produção do cuidado em diversas áreas do Sistema Único de Saúde (SUS), envolvendo os gestores, trabalhadores, usuários. Ancorando-se nos referenciais teóricos da micropolítica do cuidado em saúde (MERHY, 1997), bem como da Educação Permanente em Saúde, o estudo realiza uma pesquisa qualitativa sobre a produção do cuidado em diferentes modalidades à luz do processo de implantação das redes temáticas de atenção à saúde do SUS. A pesquisa realiza-se através da imersão no cotidiano dos trabalhadores de dois CAPS da rede local do município de João pessoa, após um reconhecimento dos vários serviços da rede. O critério de escolha dos serviços se deu a partir do interesse de profissionais em problematizar a produção do cuidado, com reflexões produzidas a partir da proposta do usuário-guia. Esse método permite avaliar o processo de trabalho de uma equipe de saúde, e a consequência das estruturas instituídas para o cuidado a partir da reconstituição de um caso, possibilitando uma reflexão sobre o cuidado prestado ao usuário. As análises se constituem em um processo conjunto de problematizações do vivenciado por pesquisadores, trabalhadores e usuários envolvidos. O cuidado em saúde mental teve avanços inegáveis, conquistados pela militância da luta antimanicomial. Há pouco tempo atrás, como é bem sabido, trancafiavam-se os considerados loucos em hospícios, dopando-os com remédios, e os submetendo a cirurgias como a lobotomia, como se a doença mental fosse um problema inserido no corpo do sujeito e que nada tinha a ver com o contexto familiar e social em que ele estava inserido. Atualmente se tem outra percepção do sujeito com sofrimento psíquico e, ao invés de isolá-lo como o membro doente, cuida-se de toda a família, pensando em maneiras de se criar espaços de socialização dele com sua comunidade - pelo menos na teoria- ao contrário de isolar a proposta é integrar. Dentro desses avanços destaca-se a criação de estruturas de cuidados na saúde mental que se opunha ao modelo do isolamento, pensando um trabalho no território e em rede. A militância pela reforma psiquiátrica consegue instituir como política de saúde em 1992 os Núcleos de Atenção Psicossocial e o Centro de Atenção psicossocial (instituídos pela portaria SAS/MS Nº224) e, depois de diversas modificações, estrutura-se a RAPS - a rede de atenção psicossocial instituída em 2011 (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2011). Já a estruturação do CAPS em três modalidades aconteceu em 2002 através da portaria MS nº 336-02 (CAPS-i, CAPS-t, CAPS-ad). Na RAPS a proposta é que os CAPS funcionem como coordenadores da atenção à saúde mental, que devem atuar integrados ao serviço de atenção básica, aos leitos hospitalares ou enfermarias psiquiátricas, as unidades de acolhida, às casas de residência terapêutica, ao consultório de rua e ao NASF. Visualizamos, na pesquisa RAC em João Pessoa, que ao invés de uma RAPS com três serviços especializados-CAPS atuando de forma integrada e harmônica, operam três RAPS constituídas pelos próprios serviços em si, atuando de forma isolada, do seguinte modo: uma de atenção a crianças e adolescentes (RAPS-i), uma segunda de atenção a usuários de álcool e outras drogas (RAPS-ad), e por ultimo uma de atenção para adultos com transtornos severos (RAPS-t). Cada serviço constrói para si seu fluxo de cuidado e apoios em rede. As três RAPS são sustentadas pela existência dos serviços especializados e pela definição de perfis e protocolos de atenção que são visualizados por todos os outros setores do sistema de saúde, e mesmo intersetorialmente, como o único local para o cuidado da pessoa com sofrimento psíquico, o que contraria a ideia de um cuidado integrado e territorializado na saúde mental. Esse é o ponto de partida do presente artigo: as percepções advindas da RAC de que a fragmentação da RAPS (explícita nos CAPS, mas presente em toda rede) em três eixos organizacionais, sustentada pela definição de perfis, protocolos de atenção e especializações dos serviços, constrói mais barreiras que acessos ao cuidado integral do sujeito. A proposta de estruturação da prestação de serviços especializados em CAPS potencializa a mudança do processo de trabalho na busca de alternativas para a medicalização, na medida em que, independente do grau de captura dos trabalhadores por uma lógica manicomial, facilita aos sujeitos a vivência de outras possibilidades de cuidado e interação com a família e os territórios. Já a divisão a priori destes serviços a partir de uma classificação nosológica favorece, ao contrário, a segmentação, na lógica das especializações da clínica biomédica delimitada por problemas, idades e diagnósticos. A segmentação se materializa nos protocolos e fluxos, que não facilitam uma comunicação real que produza conexões, para além do cumprimento destes. Isto se mostra nas seguintes evidencias do campo: o cuidado fragmentado de vários membros de uma mesma família em diferentes serviços, uma vez que tem classificações diferentes das pessoas com sofrimento psíquico; a dificuldade do diálogo entre os CAPS para decidir quem é responsável pela pessoa, quando ela apresenta sintomas difíceis de classificar; especialização do lugar da loucura nos CAPS ou leitos hospitalares definidos para tal, não se conseguindo atenção em outros serviços, mesmo que o principal problema da pessoa não seja o sofrimento psíquico; o sofrimento dos profissionais quando se deparam com situações que julgam não ser objeto de sua intervenção seja pela especialização, seja pela falta de estrutura no serviço; quase nenhuma abordagem  sofrimento psíquico na atenção básica, exceto a medicalização dos casos já vistos como diagnosticados; a dificuldade dos profissionais de serem acolhidos quando tentam romper os limites do serviço acionando redes intersetoriais ou mesmo serviços do próprio setor saúde. Aparentemente, o que fora construído com o intuito de facilitar o cuidado, possibilitar as especificidades da atenção para cada caso, e facilitar a comunicação entre os profissionais e os serviços, resulta em uma artificialidade dos problemas, objetificando a pessoa no seu diagnóstico e imobilizando o profissional ou o serviço em seu procedimento (MERHY, 2002), neste caso, a psiquiatrização/medicalização do cuidado. O campo da saúde mental é o local onde as certezas especializadas da biomedicina tidas como referenciais de descrição da realidade a priori e protocolos fixos de tratamentos segundo diagnósticos, engessam o cuidado e o limitam diante dos sujeitos com sofrimento psíquico. Como cada um de nós, esses sujeitos se constituem em multidões (Guattari), demandando um cuidado líquido que adentre nos espaços subjetivos preenchendo o que for vazio, moldando-se ao sujeito e a suas necessidades. Nesses termos o uso da clínica especializada limita a compreensão do vasto campo complexo de produção da vida, pois o cuidado não pode estar preso a protocolos, determinando sua forma por categorias noológicas, pois cada sujeito demanda cuidados espontâneos, às vezes não previsíveis. Necessitamos de menos protocolos e mais diálogo, uma rede viva (TULIO, 2015) que se produz e se inventa no ato do cuidado.  

Palavras-chave


Cuidado, saúde mental, psiquiatrização, multidões, Rede viva

Referências


BRASIL. Ministério da Saúde. (2004). Saúde mental no SUS: os Centros de Atenção Psicossocial. Brasília: Ministério da Saúde. 2004.

Conselho Federal de Psicologia, B. (dezembro de 2011). Contribuições do Conselho Federal de Psicologia para a constituição da Rede de Atenção Psicossocial no Sistema Único de Saúde a partir do Decreto 7.508/2011. . Brasília, DF.

MERHY E. E., GOMES M. P. C., SILVA E. SANTOS, M. F.L. CRUZ, K.T. FRANCO T.B. Redes Vivas: Multiplicidades girando as existências. Revista Saúde em Debate, 2014.

Deleuze, G. & Guattari, F. (1996). 1933 - Micropolítica e segmentaridade.In G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs: capitalismoe esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34.

FRANCO T.B. Redes Vivas: Multiplicidades girando as existências. Revista Saúde em Debate, 2014.