Rede Unida, 12º Congresso Internacional da Rede Unida

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A PERCEPÇÃO DOS TRABALHADORES DO CONSULTÓRIO NA RUA SOBRE A PRODUÇÃO DO CUIDADO
Tereza Cristina Ramos Paiva, Grasiele Nespoli

Última alteração: 2015-11-23

Resumo


APRESENTAÇÃO: A implantação dos Consultórios na Rua, como dispositivo da Política de Atenção Básica no Brasil, visa uma aproximação menos tecnocrática com a população em situação de rua, por meio de processos dialógicos e da garantia dos direitos e acesso a outras possibilidades de atendimento no SUS que considerem os determinantes psicossociais e culturais presentes no ato de cuidar. Este dispositivo exige o enfrentamento de desafios constantes, visto a complexidade das necessidades desta população, os impactos na rede de atenção à saúde e a visão do Estado sobre aqueles que fazem da rua seu espaço de sobrevivência que, se estigmatizante, irá propiciar o surgimento de políticas e ações assistencialistas, paternalistas, autoritárias e de higienização social. Parte-se da hipótese que, ao se compreender as percepções dos profissionais que atuam no Consultório na rua sobre a produção do cuidado, será possível identificar tanto as lógicas e sentidos propostos nas intervenções, como as relações entre cuidadores e sujeito a ser cuidado, como também desvendar modelos de atenção que se colocam em disputa no campo da saúde. Este estudo é um dos produtos resultantes do projeto de pesquisa “Usuários de Crack em Situação de Rua: limites e possibilidades constituição de redes de apoio social”, do Programa Estratégico de Apoio à Pesquisa em Saúde - PAPES/CNPQ/FIOCRUZ. O estudo buscou investigar percepções dos trabalhadores de uma equipe de Consultório na Rua sobre a produção do cuidado, dirigida aos usuários que se encontram em situação de rua e que transitam pelo território de Manguinhos/RJ. Teve o intuito de compreender os modos como concebem, operam e constroem e práticas de cuidado e quais as implicações desse ato nas políticas e na saúde da população assistida. DESENVOLVIMENTO: Tratou-se de uma pesquisa com abordagem qualitativa, que utilizou como técnica de coleta a entrevista semiestruturada. Todos os participantes foram entrevistados conforme roteiro de entrevistas elaborado para cada grupo. A organização do material considerou a sua compatibilidade com o roteiro, a representatividade do universo dos entrevistados, a lógica das escolhas dos temas e a adequação do material ao objetivo do estudo, o que possibilitou a formulação de algumas hipóteses, a determinação de unidades de registro e contexto e a forma de categorização. Houve a pretensão de analisar, além dos significados expressos no material, a opacidade de determinados discursos, tomando como base a interpretação como um ato no nível simbólico e as categorias, ontológica, genealógica, crítica e reconstrutiva, presentes nas percepções dos trabalhadores sobre a produção do cuidado em saúde. RESULTADOS: A partir da análise dos relatos foi possível identificar concepções e modos de cuidar distintos. Como categoria ontológica, o cuidado molda as diversas formas de existência, as identidades que estão sempre em construção, em movimento, no e pelo ato de viver, que se concretiza na presença e interação com o outro, isto é, como se dá o encontro. A dimensão ética do cuidado se fez presente em diversos discursos, através de falas que remetem às estratégias de criação de vínculos e experiências gratificantes e que agregam valor à vida. Para compreender o cuidado como categoria genealógica, buscou-se analisar como os participantes compreendem e vivenciam o cuidado de si; de ocupar-se e preocupar-se consigo; como lidam como cuidar da própria vida, que suporta um jogo de trocas com o outro, num aprendizado constante. Para a maioria dos profissionais a necessidade de formação continuada, de trocas de experiências para melhor lidar com o outro é uma forma de introduzir mudanças no modo de produzir cuidado, tanto de si como do outro. O cuidado como categoria crítica, que se relaciona ao modo de interação das tecnologias na e pelas práticas de saúde, foi percebido como necessidade de supervisão, de espaços coletivos de discussão permanente, de escuta, instrumentos que precisam de visibilidade para que sejam operacionalizados. Por outro lado, as dificuldades de acesso, de encaminhamento, ou a falta de interesse por parte de alguns serviços foram apontadas como desafios a serem superados pela gestão, reconhecida a necessidade da interação entre o conhecimento técnico e os projetos de vidas dos usuários a quem se presta assistência. Cuidar das pessoas que vivem em situação de rua, não significa manter as pessoas na rua, significa garantir o direito dela permanecer nela. Essa potencialidade reconciliadora entre as práticas de saúde e a vida revelou a percepção do cuidado como categoria reconstrutiva das práticas de saúde. Neste sentido, o cuidado visa o exame das finalidades e meios e sentido prático das ações de saúde e não apenas a aplicação mecânica de tecnologias. O ato de cuidar é percebido também como um instrumento que se contrapõe à lógica da exclusão. Ao circular com o usuário na rede de serviços de saúde, indo com ele às unidades especializadas, o profissional acaba exigindo desta um posicionamento em ato, visto que nem sempre as tecnologias estão implicadas no estabelecimento de interações intersubjetivas e dialógicas e de valorização de outras racionalidades terapêuticas, o que revela modos distintos da produção de cuidado e de estruturação da rede de atenção no território por parte dos demais profissionais. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A análise possibilitou compreender modelos e lógicas distintas de operar e conceber o cuidado diante da experiência de adoecimento física ou mental da população em situação de rua. Embora o cuidado seja percebido pela maioria dos entrevistados como prática de encontro intersubjetivo, de diálogo, de estabelecimento de vínculo e acolhimento, alguns relatos revelam a predominância de sua dimensão técnica-instrumental, em que o cuidado é percebido como algo que se faz pelo outro, impedindo muitas vezes o protagonismo daquele que é cuidado. Desta maneira, é preciso superar os aspectos normativos das práticas de cuidado que dificultam a autonomia, obstrui a circulação de bens simbólicos e dificultam a troca entre os sujeitos e a integralidade das ações de saúde. Além da melhor regulação da rede para garantir o acesso, do aumento da capacidade resolutiva dos níveis de complexidade de atenção e da eficiência das tecnologias empregadas na atenção básica, é necessário ampliar a qualificação dos trabalhadores como elemento constituinte do processo de trabalho e promover a discussão e mediação entre as equipes para consolidar práticas democráticas; superar estigmas e a lógica de confinamento e exclusão ainda presentes na postura de alguns profissionais e fortemente na relação entre o Estado e a sociedade. É necessário o fortalecimento de políticas públicas que compreendam que o cuidado não se restringe à ação de um agente cuidador, mas que ele se efetiva na rede de relações de corresponsabilidade entre sujeitos num determinado território. O território, não apenas com espaço geográfico, mas espaço micropolítico onde a vida se desenvolve, tendo o cuidador à função de propor, facilitar ou conduzir relações de cooperação e apoio, num posicionamento desejante, ético, técnico e político. Desejante porque o cuidado só é possível através de uma atitude terapêutica que busque seu sentido existencial; ético porque envolve respeito pelo modo como as pessoas levam a vida; técnico porque pressupõem conhecimentos sobre as práticas de saúde e político porque o ato de cuidar se insere na luta pela garantia de direitos e transformação das práticas sociais, reconhecendo o outro na sua liberdade e singularidade.

Palavras-chave


Cuidado em saúde, trabalho em saúde, Consultório na Rua

Referências


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