Rede Unida, 12º Congresso Internacional da Rede Unida

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A INTEGRALIDADE COMO DISPOSITIVO PARA INTERROGAR O COTIDIANO
Clarissa Terenzi Seixas, Emerson Elias Merhy, Rossana Staevie Baduy, Helvo Slomp Junior

Última alteração: 2015-11-23

Resumo


APRESENTAÇÃO: À partir de nossas reflexões em torno do chamado modelo biomédico e seus desdobramentos na constituição do profissional de saúde - que tende a operar sob um modo de subjetivação biomedicalizado e por vezes frustrante para si e para o usuário - e nas práticas de saúde, retomamos a palavra-conceito integralidade, com atenção especial às apostas e disputas em torno de seus significados e de seu acontecimento no cotidiano do trabalho em saúde. Para tal, utilizaremos exemplos oriundos da pesquisa “Rede de avaliação compartilhada (RAC) / Observatório nacional da produção de cuidado em diferentes modalidades, à luz do processo de implantação das redes temáticas de atenção à saúde no Sistema Único de Saúde: avalia quem pede, quem faz e quem usa” e do cotidiano da saúde. A palavra-conceito integralidade, que surge "com a intenção de ser portadora de uma formulação de mudanças radicais, para as ações em saúde" (1 p. 196), como se a palavra em si já garantisse o "protagonismo de novas práticas de saúde", tem sido engravidada, como diria Merhy (1), de forma distinta por diferentes lógicas/projetos do agir em saúde em disputa. Muito se fala em integralidade, sem que nada de novo venha surgir na produção do cuidado ou, até, camuflando velhas práticas autoritárias. Diversas são as situações, no cotidiano do trabalho em saúde, em que é possível identificar e até vivenciar tais práticas, como a que trazemos aqui, vivenciada por um de nós: a interconsulta pediátrica realizada por uma médica e uma enfermeira, em uma unidade de saúde de um município brasileiro, era alardeada como uma prática inovadora e “integral”. Na prática consistia no seguinte: a criança entrava com a mãe no consultório, a enfermeira media, pesava, auscultava, e a médica anotava, prescrevia. Não havia diálogo, troca. E tudo isso sem tocar ou se dirigir à criança e tampouco à mãe. Não negamos que práticas como essas podem estar cheias de boas intenções, e muitas vezes são competentes no âmbito dos procedimentos técnicos. Porém, é de se perguntar se havia aprendizado coletivo e permanente para o acontecer do cuidado e o quanto os usuários participavam da construção dessa estratégia. Reconhecemos também que os chamados vazios assistenciais, a exemplo dos problemas de acesso à atenção especializada (2,3), comprometem a oferta de tecnologias duras e leve-duras no SUS, também importantes para a efetivação da integralidade. Mas, como engravidar a “integralidade” de sentidos e significados produtores de mais saúde, de mais vida? Quais sentidos e significados são esses? E, a partir disso, como potencializar a produção do cuidado em nossas práticas? Para que novos processos possam ter lugar, precisamos indubitavelmente interrogar permanentemente os modos instituídos de produção de saúde. Para Merhy e Feuerwerker (1,4), uma bela ocasião para se quebrar a lógica dominante na saúde é a sua desconstrução no espaço da micropolítica, no espaço da organização do trabalho vivo em ato e de suas práticas, onde o agir protocolar dos núcleos profissionais não dá conta, da produção do cuidado. E, nesse sentido entendemos que o conceito de integralidade, mesmo que por vezes massificado, pode ser engravidado, desde que a partir de outro projeto ético-político, aquele que coloca a centralidade das práticas de saúde no cuidado, nas demandas e necessidades em saúde das pessoas e coletivos. E isso não nos parece possível se não compreendermos qualquer espaço para a produção do cuidado, incluindo a clínica, como locus de troca, de escuta, de diálogo, de intercessão, vale dizer, de encontro. Nesse encontro, a interferência é mútua e a construção é conjunta, à partir do momento em que eu reconheço o outro como um “sabido”, um interlocutor com quem devo pactuar (1,4,5). Entendemos que se trabalharmos com um modelo de cuidado, de saúde, de felicidade e de vida para o outro, e tentarmos impô-lo, estaremos fadados ao fracasso: nem sempre nossa “prescrição” será colocada em prática ou, ainda pior, poderá ser imposta num ato de violência. Isso talvez possa parecer óbvio num primeiro momento, mas é só olhar para a naturalização dos “bons hábitos” que alardeamos como doutrina (não fumarás, praticarás exercícios físicos regulares, tirarás o sal e o açúcar da sua dieta etc.), disfarçados sob a égide de uma promoção da saúde, para nos darmos conta das discriminações, imposições e micro-violências que praticamos ao padronizarmos comportamentos de forma autoritária. Ofertamos a seguir outro exemplo, a fim de ilustrar nossa reflexão. Uma nutricionista tentava pensar uma dieta para um senhor de 96 anos, restrito ao domicílio. Nos últimos tempos, esse senhor vivia praticamente acamado e com diversas comorbidades crônicas. Ela tentava conciliar todas as restrições alimentares que ele tinha - cada uma imposta por um especialista diferente - para elaborar uma dieta equilibrada. Mas eram tantas as restrições - não podia carne vermelha por conta da dislipidemia, não podia carboidratos e açúcares porque era diabético, não podia diversos legumes e frutas porque o potássio estava alto: com tantas restrições ficava quase impossível comer, quanto mais encontrar algum prazer nisso. Aos 96 anos, será que tudo isso era mesmo produtor de mais vida? Quando não reconhecemos no outro um ser desejante que aposta em outros modos de vida, que tem desejos e projetos diferentes daqueles que as “boas práticas” determinam, e do que tem valor para nós, profissionais, por vezes traçamos planos de cuidado ineficazes, disparando prescrições que muitas vezes não serão seguidas, criminalizando desejos. Nessa falta de diálogo, deixamos de aprender, deixamos de mudar e acabamos realizando um trabalho enfadonho, repetitivo, morno - ou frio mesmo. Um trabalho que não traz satisfação nem pra nós, na sua repetição, nem para o usuário. Um trabalho que não enxerga no outro nada além de problemas a serem extirpados, que não enxerga a potência e o saber do outro. Um trabalho que não produz encontro, ou até produz maus encontros. CONSIDERAÇÕES FINAIS: É esse o desafio central. Apostar que a vida do outro vale a pena, e que a vida do outro me enriquece, como disse Emerson Merhy (6). É claro que há diversas situações em que fazemos isso, em que nos desdobramos, em que liberamos a nossa potência de agir e produzimos empatia, vínculo e co-responsabilização em torno dos problemas que se apresentam. Fugimos dos protocolos e rotinas engessados dos serviços e batemos numa porta, pegamos um telefone, mobilizamos a equipe, estudamos o caso nas horas vagas, articulamos as possibilidades cuidadoras com colegas, sejam eles de nossa equipe ou não. Fabricamos bons encontros e caminhos cuidadores. Então a integralidade da prática que produz cuidado, teria a ver com o reconhecimento do diferente e singular, do outro na sua forma de viver, de pensar, de estar no mundo, de desejar como produtor de vida e de outros saberes. Tem a ver com o deixar-se afetar no encontro e construir junto, estratégias cuidadoras, e portanto, nessa perspectiva, integrais. Tem a ver com colocar a centralidade das práticas de cuidado nas demandas e necessidades das pessoas e dos coletivos e nisso ressignificar modos instituídos como, por exemplo, a clínica. Eis o que esses e outros tantos exemplos do cotidiano dos serviços de saúde nos levam a refletir no que tange à palavra-conceito integralidade.

Palavras-chave


Integralidade; SUS; Cuidado

Referências


1. Merhy EE. Engravidando palavras: o caso da integralidade. In Pinheiro, R & Mattos, R. A. (orgs.). Construção social da demanda. Rio de Janeiro: IMS/UERJ-CEPESC-ABRASCO, 2005, p. 195-206.

2. Oliveira PTR, Sellera PEG, Reis AT. O Monitoramento e a Avaliação na Gestão do Ministério da Saúde. Revista Brasileira de Monitoramento e Avaliação, n. 05, janeiro-junho de 2013.

3. Cecílio LCO. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e equidade em saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. (org). 3ª Ed., Rio de Janeiro: IMS-UERJ-ABRASCO, 2001, pp. 113-126.

4. Feuerwerker LMC. Micropolítica e saúde: produção do cuidado, gestão e formação. Porto Alegre: Rede UNIDA (Coleção Micropolítica do Trabalho e o Cuidado em Saúde), 2014, 174 p.

5. Slomp Junior H, Feuerwerker LCM, Land MGP. Educação em saúde ou projeto terapêutico compartilhado? O cuidado extravasa a dimensão pedagógica. Ciênc. saúde coletiva,  Rio de Janeiro, v. 20, n. 2, Feb. 2015. Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232015000200537&lng=en&nrm=iso>. access on  02  Mar.  2015.

6. Merhy EE. A educação permanente em saúde em movimento. Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=o-nApG0Wgks. Acessado em 17 de fevereiro de 2015.