Rede Unida, 12º Congresso Internacional da Rede Unida

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Sobre as mulheres que abortam
Paula Land Curi, Jaqueline de Azevedo Fernandes Martins

Última alteração: 2015-11-23

Resumo


O presente trabalho tem como objetivo apresentar alguns achados clínicos, provenientes do trabalho de escuta realizado com mulheres, em uma instituição pública de saúde materno-infantil, na cidade do Rio de Janeiro. São mulheres que passaram pela experiência do aborto clandestino. Ou melhor, mulheres que precisaram recorrer a práticas inseguras e que, por suas complicações, acabaram por adentrar o sistema público de saúde, para realização do procedimento de curetagem. Enfim, mulheres vítimas de um estado frágil, que as expõe ao risco de vida por não oferecer-lhes devida assistência. Apesar de o aborto ser criminalizado no país, diante de fatos concretos, pode-se observar, por exemplo: a) mulheres sempre abortaram, abortam e sempre abortarão; b) são exatamente essas mulheres, cujos abortos ‘não deram certo’ que chegam aos serviços de saúde; e, c) existem abortos que dão certo e, por isso, deles nós não sabemos e pouco ouvimos falar. Consideramos o aborto um tema complexo e espinhoso para uma sociedade, que não consegue pensá-lo como uma problemática relevante no campo da saúde pública e, por isso, impõe estratégias de ação. Ainda hoje, o aborto é considerado prática criminosa e, muitas vezes, discutido, inclusive pelos legisladores e gestores, a luz de achismos, crenças e valores. Contudo, o que ele revela é, com total alvura, a desigualdade social e as vulnerabilidades específicas que se fazem presentes e assolam nosso país. Sabe-se que seus números são tão alarmantes, mesmo que apenas estimados, que eles já justificariam, por si, medidas de prevenção à saúde sexual e reprodutiva, assim como a vida de mulheres. Ter a compreensão que, exatamente, para tentar diminui-los, políticas públicas veem sendo paulatinamente, formuladas, implementadas e efetivadas. Mas, ainda sevê diante de pequenos avanços, grandes lacunas, especialmente quando se está diante das condições de acesso à saúde e assistência às mulheres. Sempre uma questão ecoa: O que podemos oferecer a essas mulheres? Pensando em como se poderia cuidar efetivamente dessas mulheres, oferecer-lhes uma assistência mais humanizada e digna, lançamos mão de uma escuta capaz de refletir sobre os sujeitos-mulheres. Compreender que essas mulheres passavam a exigir nossa atenção não apenas para transformá-las em números – mais uma - e perfis – negra, pobre, analfabeta -, mas sim para tomá-las enquanto sujeitos de desejo. É preciso escutar delas, o que as afeta, mas, para isso, é preciso poder escutá-las de outro lugar e oferecer-lhes uma escuta sensível capaz de tomá-las uma a uma - singularizá-las. Contudo, ao dar-lhes vozes, acabam por deparar com uma (possível) nova versão para o fenômeno do aborto. Consequentemente se vê diante do dever ético de dizer algo sobre aquilo que apresentava. Nos atendimentos oferecidos nos leitos hospitalares a essas mulheres, após serem submetidas ao procedimento de curetagem, elas se indagavam se realmente alguém quer abortar, se realmente alguém opta por isso tão facilmente quanto às pessoas tendem a achar. Elas, diferentemente do que, de alguma forma, já se era até esperado, não falavam de suas misérias sociais, conjugais ou mesmo econômicas. Nem mesmo deixavam claro que queriam de fato interromper suas gestações, apesar de terem feito. Elas simplesmente diziam que precisavam abortar. Mas, o precisar era escutado no sentido de uma obrigação, ter de abortar, fossem compelidas a abortar, como se para elas, naquele momento, não houvesse outra saída. Traziam como personagem central no cenário dessa vivência, em certo sentido violento, solitário, penoso e desastroso, que poderia as levar à morte, suas mães. Ou melhor, seus conflitos com elas e toda uma séria de dificuldades que se apresentam implicitamente no processo de se tornarem mães. Ou seja, mostravam que tornar-se mãe é algo para além de engravidar e parir. Tal evidência não poderia ser descartada, como outro aborto descuidado. Precisava ser cuidada, refletida, investigada, pois era efeito de um trabalho de escuta, realizado com essas mulheres. Efeito de sujeitos, podemos dizer. Elas ratificam também os ensinamentos da psicanálise, que caminham na direção de nos mostrar que não há como falar de vida sexual e reprodutiva de mulheres se não discutir a complexidade da relação mãe e filha, o que Freud chamou de fase pré-edípica, e os seus desdobramentos no caminho em direção à feminilidade. Afinal, estava diante de outro fato: não há mãe que não tenha sido um dia filha e o que elas revelam era como é difícil passar da posição de filha à mãe. Algumas mulheres, atendidas na unidade em questão, após a realização da curetagem, relatavam que suas ‘decisões’ não tinham se dado propriamente a partir de motivações sociais. Sim, eram pobres, às vezes sozinhas, desempregadas. Mas, o que realmente se apresentava como sendo o que as levava a buscar o aborto inseguro, colocando inclusive suas vidas em risco, era o que era vivido como imperativo. Não havia motivos mais concretos do que a exigência, a imposição, psíquica pelo aborto, realçando que havia outra coisa em jogo para além da ‘simples decisão’ de ter ou não o filho esperado porque viviam em estado de vulnerabilidades sociais. Não pretendemos com esse trabalho tratar dos avanços que se deram no campo das políticas públicas voltadas à saúde da mulher e aos direitos reprodutivos. Eles, apesar de ainda demandarem muito trabalho, de vários atores e segmentos sociais, são indubitáveis. O que pretendemos é compartilhar a experiência que adveio do trabalho de escuta, visto que isto possibilitou fazer uma leitura diferenciada, bastante, diferenciado do aborto. Nossa intenção foi evidenciar que, para além de proposições e ações concretas necessárias para proporcionar às mulheres uma assistência mais eficaz e digna, torna-se fundamental que sejam maximizados os processos subjetivos que se explicitam nos casos de abortamento e que estão presentes no cotidiano da clínica com mulheres. Basta ter alguém que as queira escutar. Por fim, cabe ressaltar que quando se aponta na importância de nos dirigir aos sujeitos-mulheres que abortaram, isto está implicado com aquilo que se escuta e não tem nenhuma ideia contra o aborto ou a seu favor. Tem certo de que o fundamental é que os olhares e a escuta se voltem a essas mulheres, que com suas falas nos apresentam seus enigmas, convocando a clínica a um posicionamento.

Palavras-chave


Aborto clandestino; assistência; escuta