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Tecendo considerações sobre a (não) produção de cuidados nos casos de abortamento espontâneo
Última alteração: 2015-11-23
Resumo
O trabalho que se propôs apresentar parte da escuta clínica de mulheres, em situação de abortamento espontâneo, numa maternidade pública situada na cidade do Rio de Janeiro. Tem como objetivo tecer algumas considerações sobre a assistência que lhes fora dada, em um primeiro momento, evidenciando a não produção dos devidos cuidados com os restos psíquicos derivados das experiências de abortamentos e o que se inscreveu, posteriormente, a partir de um trabalho multidisciplinar, na unidade em questão, ou seja, objetiva. Em um segundo tempo evidenciar como a partir de um intenso trabalho de desnaturalização de práticas legitimadas. A unidade caminhou na direção da criação de um ambulatório de perdas gestacionais, revelando e legitimando a importância de se propiciar e garantir um espaço onde as mulheres pudessem falar de suas vivências e elaborar a dor de suas perdas. Trabalhar numa maternidade, inexoravelmente, nos leva ao encontro com mulheres e, em meio a gestantes, parturientes e puérperas, estão aquelas que deram entrada na unidade de saúde por conta dos abortamentos espontâneos de seus tão sonhados filhos. Essas mulheres que, de alguma forma, ficam relegadas ao segundo plano, por evidenciarem, nos seus corpos, ‘coisas’ que ninguém quer saber. Naquele tempo, essas perdas, aos olhos de várias equipes de saúde, não teriam qualquer impacto ou implicação na vida desse sujeito-mulher. Pelo contrário, eram perdas muito singelas, que ocorriam em mulheres que ‘mal estavam grávidas’, com poucas semanas de gestação, que nem sempre chegavam a ganhar visibilidade, quer porque algumas mulheres nem tinham ‘corpo de grávida’, quer porque eram mortes sem concretude, mortes sem corpos. Era como se o ditado popular se fizesse presente: ‘o que os olhos não veem, o coração não sente’. No entanto, essas perdas evidenciavam um grande descompasso entre o que as mulheres viviam e diziam e o quê as equipes de saúde conseguiam enxergar e escutar. De um lado, mulheres buscavam o reconhecimento dos filhos perdidos, de suas dores, até mesmo o direito de poderem chorar sem serem patologizadas. Do outro, equipes cegas e surdas diante dessas mulheres e do ocorrido. Afinal, o que elas perdem? Os profissionais de saúde, de forma geral, não conseguiam perceber, ou mesmo escutar, que o que fora perdido não eram simplesmente embriões e fetos que não tinham um lugar em suas vidas, mas seus filhos desejados. Consequentemente, elas padeciam não só com as perdas sofridas, mas também, em certo sentido, com o desmentido destas e com a negação de seu sofrimento. Padeciam com a impossibilidade de terem as crianças esperadas em seus braços, mas também com a impossibilidade de tornarem-se mães, quer pela primeira vez, ou mesmo mais uma vez. O ingresso de um profissional psi na unidade, orientado pela psicanálise, que tem como ferramenta de trabalho a escuta, após algum tempo de trabalho com essas mulheres, consegue evidenciar que o que elas precisavam para que cuidados em saúde fossem de fato oferecidos, era que pudessem ser escutadas. Se, por um lado, estavam ali porque demandavam cuidados com seus corpos, por outro, evidenciavam com suas narrativas a demanda por cuidados com os restos psíquicos provenientes de suas perdas. Precisavam poder falar para quem pudesse e conseguisse suportar escutar a dor que as atravessava: a dor da perda de um filho. Partindo da premissa de que restos psíquicos podem reverberar nas vidas dos sujeitos, um passo adiante foi dado na unidade, consequência direta do trabalho multidisciplinar. Com o tempo, alguns profissionais de saúde conseguiram se sensibilizar diante do que no seu dia a dia era tão presente e tão escamoteado. Conseguiram compreender que, a despeito também de nossas dores, de nosso confronto com a finitude de outrem, que por definição nos revela a nossa própria, temos o dever ético de nos ocuparmos com essas mulheres, que necessitam de que suas dores sejam, no mínimo, reconhecidas por aqueles que dizem querer cuidar, para que um trabalho de luto se inicie. Retirar o véu, sempre presente nas unidades materno-infantis, que encobre a morte. Deixar de lado as crenças imaginárias que falam que o se vê na maternidade é só alegria, vida, sucesso. Demarcar que a morte interrompe a vida, não só daquele que estava por vir, mas atravessava a vida das ‘ex-mães’. Assim, marcados pelo desejo de construir um espaço de trabalho capaz de fazer emergir um sujeito, dando-lhe voz e oferecendo-lhe escuta, ratificou-se a importância de se criar um ambulatório de atendimento psicológico voltado às mulheres que sofreram perdas gestacionais. Nesse, mulheres seriam atendidas, mesmo que tivessem tido suas gestações muito precocemente interrompidas. Apostávamos que, ao oferecer este espaço e a possibilidade de serem escutadas, às mulheres poderiam dissipar suas dores, a perda poderia ser sentida para, enfim, ser elaborada. Isso porque se escutava através das falas de algumas, sobre suas necessidades de falar sobre o vivido, sobre o que as acometeu, mesmo quando culpavam a unidade pela perda, pela (des) assistência prestada. Apesar de sabermos que o luto é um trabalho psíquico que não requer tratamento e que vai se concretizando com o tempo, percebíamos nesses atendimentos que algumas mulheres enunciavam a necessidade que tinham de serem auxiliadas na elaboração de suas perdas. O processo era muito difícil, penoso, pois, revelar-se-ia, no mínimo, ‘antinatural’. Além disso, não se tratava apenas, como alguns proferiam, de voltar para casa, desmontar o quartinho, guardar ou doar o enxoval. Tratava-se de algo muito maior, um trabalho muito dispendioso, necessário, para que suas vidas pudessem ser retomadas. Através desse trabalho com essas mulheres, concebemos que a vivência de um abortamento espontâneo, mesmo que nas semanas iniciais de uma gestação, pode deixar no sujeito uma marca indelével, que demanda trabalho psíquico. Este convoca a um luto excepcional, que traz consigo algumas características bem incomuns. Afinal, a dificuldade de reconhecimento e da legitimidade da perda, se inscreve, por exemplo, pela não existência do rito do enterro. Conclui-se que, para poder assistir efetivamente mulheres, produzir cuidados em saúde, precisa ir além da lógica predominantemente biológica que ainda impera nas instituições médicas de saúde. Essa, que ainda é a marca central de assistência, precisa ser revisitada. Temos que considerar que para poder cuidar, temos como exigência, considerar os desdobramentos que se apresentam para além dos aspectos biológicos, em termos das vicissitudes do viver.
Palavras-chave
Aborto espontâneo; Assistência; Luto