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Relato de experiência sobre aprendizado vivenciado no processo de doação de órgãos e transplantes
Última alteração: 2015-11-04
Resumo
APRESENTAÇÃO: O transplante de órgãos ainda é a única alternativa da sobrevida para diversas patologias. Doar aumenta a oportunidade de salvar tantas pessoas que esperam por um órgão com a esperança do recomeço. No primeiro semestre de 2015, pela primeira vez em oito anos, segundo pesquisas do RBT (Registro Brasileiro de Transplantes), foi observada uma diminuição na taxa de potenciais doadores e doadoresefetivos para o número de transplantados de rim, fígado e de pâncreas em relação a 2014. O maior obstáculo para o aumento no número de doações ainda é a recusa familiar. A motivação que impulsionou este relato foi à convivência com várias pessoas que esperavam por um órgão, muitas delas estavam em estado elevado da doença, uma delas inclusive era um familiar, que precisava de um fígado e que, mesmo com a queda de doador não vivo do órgão, conseguiu a tão almejada cura. Este relato tem como objetivo incentivar as pessoas a efetivação na captação de órgãos, bem como, mostrá-las a experiência de uma família que se recusava a doar. Incentivando assim, outras famílias para a importância de um gesto solidário, de amor e coragem.DESCRIÇÃO DE EXPERIÊNCIA: Todos os dias alguém morre. A morte pode ser em qualquer lugar do mundo, que talvez a maioria da população mundial nem saiba o nome. Todos os dias alguém precisa de um órgão. A intempérie para o processo do tipo vida por vida é que nem todo falecido é doador e nem toda família aceita a doação. A mudança de mentalidade da família sobre a doação de órgãos só é modificada quando o médico diz: “A única forma de cura para o paciente é um fígado novo, através do transplante.” A partir disso a maneira de pensar em relação ao assunto muda. Há uma cultura por parte dos familiares mais idosos que doar órgãos não é bom para o corpo. Sendo assim a família absorve esta ideia e passa para os demais membros. Embora isto possa mudar e o que antes dizia não aceitar doar órgãos por motivos religiosos, psicológicos, espirituais e culturais, passa a ver o processo de forma diferente. Muitas vezes o genitor da família é o paciente em questão e seria preciso que alguém morresse e doasse o fígado para que ele continuasse vivo. É alarmantee devastador emocionalmente se deparar com tantos casos doentios no hospital de transplantes, são inúmeras pessoas ansiosas por um ato de solidariedade. É impactante para os acompanhantes e para o paciente hepático ver o quanto à fila é e era grande e nela havia um número considerável de pessoas doentes em busca da sobrevida e da esperança na cura. Muitas são as histórias, como por exemplo,quando o idoso da família estava internado com altíssimo grau de encefalopatia e uma das visitas falou que o paciente do leito da frente havia chegado de outra cidade vomitando sangue; que ele havia sido contemplado com um fígado, mas que depois a família do doador desistiu. Pode-se acompanhar pelo acesso ao jornal que as famílias desistem da doação causando um mal maior para quem aguarda por uma doação. A equipe multiprofissional daquele hospital foi de grande importância para a evolução do tratamento. O idoso da família com crises intensas de encefalopatia, barriga d’água e depressão era muito bem atendido por todos do setor responsável pelo transplante. O respeito pelo paciente, pelo medo, pela angústia, pela pressa, pelo sofrimento da extensão do paciente - a família - foram muito bem assistidos. Era uma cultura de diferentes profissionais ligados à redução do dano e atentando-se também ao desejo, a emoção, ao interesse pela vida do paciente, alicerçados a todos os saberes técnicos e humanitários. No início de julho de 2015 fui com o integrante da família a uma consulta hospitalar. O setor estava participando de uma matéria para os meios televisivos, o motivo para as entrevistas eram: o número de doações estar fraco. Falavam que havia um número exacerbado de pessoas na fila, muitas estavam mal, algumas internadas e outras em casa enquanto o nódulo crescia.É muito comum o futuro transplantado ficar imaginando como seria o doador, do que seria a morte, se iria ter doador, se ele aguentaria a espera, se ele morreria logo. Uma transcendência de pensamentos e indagações, como se talvez o braço do doador fosse grande e a estatura alta, careca e gostasse de feijão com arroz, enquanto o “doente” tivesse braços finos, estatura mediana, um aglomerado capilar na cabeça e comesse somente frango; que talvez o fígado fosse de mulher, ou de um jovem ou de alguém que se suicidou. Apesar de todas as diferenças nesse processo de devaneio, em tudo não há desigualdades quando o que se leva em consideração vai além da perspectiva apenas de sobrevivência, mas também a da intensidade da vida com honestidade e a possibilidade de renovação do futuro de pessoas que nunca se viram, um precisando receber uma doação e a outra doando. O transplante ocorreu no início de agosto de 2015. O doador tinha 41 anos, talvez fosse muito diferente do transplantado, ou até mesmo parecido em fenótipo. Todas as dúvidas e indagações se transformaram em respeito ao doador e sua família. O transplantado de 71 anos tem um fígado de 41 anos e a sua família assim como tantas outras aprenderam que a manipulação de corpos para a retirada de órgãos não interfere nas crenças religiosas e espirituais e que esse ato pode dar à continuidade a vida de várias outras pessoas que aguardam muito pela chance de continuar a viver.IMPACTOS:Hoje, minha família é de doadores efetivos e potenciais doadores. O impacto com a precisão de transplante para o patriarca da família fez-nos atentar-se de que o corpo pode salvar muitas pessoas. Aprendemos que doar é salvar o outro e não saber que está se salvando. Aprendemos que não importa a cor, a etnia, classe social, todo ser humano tem os mesmos órgãos específicos, diferenciando-os em algumas peculiaridades. Aprende-se que enquanto a terra decompõe órgãos há pessoas precisando deles para continuar vivendo. Aprende a valorizar a vida e incentivar outras pessoas a entender o quanto isso é importante. Aprende que se não tiver doação não terá transplante e milhares de pessoas poderão morrer. Aprende que dar a continuação da vida para outras pessoas vai além de um órgão de um momento.CONSIDERAÇÕES FINAIS: Ainda é imprescindível a doação de órgãos. Recebê-los para pacientes que tanto almejam a vida é a esperança na reconquista e na renovação. Há muito que se fazer para ultrapassar as fronteiras da recusa familiar e da dificuldade na realização dos testes para diagnósticos de morte encefálica, por exemplo. O que se presencia nesse longo período além de muito sofrimento foi à grande falta de doações. Enquanto a doença avança e não há expectativas para muitos doadores, a família sofre com a acelerada progressão do caso clínico, psicológico e deformador. Um ato de solidariedade, de coragem, de amor pode salvar até 25 vidas, que esperam viver mais, sorrir mais, ser feliz, mais.
Palavras-chave
Doação de órgãos; Transplantes; Família