Rede Unida, 12º Congresso Internacional da Rede Unida

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Cenas de educação permanente como máquina de transver na produção da pesquisa em saúde
Helvo Slomp Junior, Claudia Aparecida Amorim Tallemberg, Clarissa Terenzi Seixas

Última alteração: 2015-11-23

Resumo


APRESENTAÇÃO: O presente trabalho busca produzir uma reflexão acerca das possibilidades que a educação permanente em saúde (EPS) oferece como dispositivo para a produção de conhecimento quando da pesquisa em saúde, sempre que se toma como território privilegiado de investigação a micropolítica do trabalho e das práticas cotidianas de produção do cuidado em saúde. Em algumas investigações1,2,3,4 e, mais recentemente, na pesquisa (em andamento) “Rede de avaliação compartilhada (RAC) / Observatório nacional da produção de cuidado em diferentes modalidades, à luz do processo de implantação das redes temáticas de atenção à saúde no Sistema Único de Saúde: avalia quem pede, quem faz e quem usa”5, nos deparamos com cenas de EPS na cotidianidade dos serviços, seja como estratégia principal de investigação3, seja como cenário que emerge como necessário para certos encontros dos atores envolvidos, em discussões de caso1,2,4,5. A “máquina de transver” citada no título desse trabalho faz referência a uma articulação proposta por nós entre o conceito de “máquina” no sentido dado por Deleuze e Guattari - máquina como produção do desejo na perspectiva imanente e coletiva de potência, uma produção desejante “de fora”6 - e o verbo ”transver”, inventado pelo poeta Manoel de Barros7. Tomaremos as duas cenas à seguir como ponto de partida para a discussão: Cena 1. Pesquisadores reunidos com trabalhadores da equipe de uma unidade básica de saúde do Município C, durante a discussão sobre a usuária Sueli (Nome fictício). A equipe, atônita, indaga-se: por que e por onde a usuária vazou do caminho proposto pela rede de serviços? Como um caminhar pela rede pautado nos protocolos de referência e contra-referência pode ser interditor do cuidado? Começam a se perguntar também sobre seus processos e práticas cuidadores.   Cena 2. Marcos, usuário em uso intensivo de álcool, restrito ao leito por uma impossibilidade de andar, é admitido em uma UPA cuja equipe, na iminência de "devolver" o usuário ao domicílio e ao convívio familiar, passa a se preocupar com a continuidade do cuidado pela ESF de referência. Uma fala que se repete na conversa com alguns trabalhadores da ESF: “- Se ele voltar a andar, vai voltar a beber, de que adianta!?”. A pesquisa convida a equipe da estratégia de saúde da família do território, profissionais do NASF local e do CRAS (assistência social) para debate. DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO: Estamos propondo que a EPS serviu e serve a cada uma dessas pesquisas como “dispositivo”, e o fizemos convidando Foucault para este debate, para quem dispositivo é a rede que se pode tecer entre muitos elementos, sejam decisões, discursos, enunciados, proposições morais, etc. Ou seja, entre o dito e o não dito7. Isso só é possível porque a EPS é o movimento que aposta na relevância, como substrato pedagógico, da experiência cotidiana, a vida vivida em ato, onde os incômodos e tensões passam a motores do processo pedagógico, possibilitando assim que se obtenha dos mesmos toda a sua potência transformadora da realidade em saúde6,7, assumindo-se que saúde se produz em ato8. A partir de 2014 o Ministério da Saúde inicia um processo formativo chamado “educação permanente em saúde em movimento”, construído com um propósito bastante claro: “reconhecimento” de experiências de EPS, e “cooperação” entre elas nas redes brasileiras de atenção à saúde9. Uma das ferramentas propostas para compor a caixa de ferramentas de tal navegação é o mergulho em “cenas” do cotidiano do trabalho em saúde, atalhos de cenas entendidas como: histórias muitas vezes vivenciadas no cotidiano dos nossos serviços (...), sendo que ora os personagens são os mesmos, apresentando diferentes vivências que se “cruzam” no processo de trabalho, ora você encontrará personagens distintos com histórias únicas”10 (p.01). esse é o sentido do uso das “cenas de EPS” que propomos neste texto. IMPACTOS: A cena 2, cujo usuário retorna à atenção básica, evidenciou que há muito já se existia uma certa tensão com o caso do usuário M que, para a equipe, representava inicialmente um certo perfil provisório3, ou seja, era visto de um certo modo a priori, que ao longo dos encontros assume diferentes feições, pois foi possível ver-dizer para além da verticalidade hierárquica dos organogramas piramidais dos estabelecimentos, dos protocolos e roteiros para procedimentos de atenção, e das categorias pré-estabelecidas (“casos difíceis”, usuários que “não aderem ao tratamento”). O mesmo, embora diferente, se deu com o processo investigativo em torno da usuária da cena 1. Cenas de EPS constituem encontros intercessores que produzem saúde (e aqui, conhecimento), não são espontâneos, se constroem, e vamos para eles de um ou de outro modo, nos abrimos, nos posicionamos, agimos e, no caso da saúde, cuidamos. Ou não, paralisamos, nos escondemos atrás de protocolos e rotinas burocratizadas, e fugimos do encontro. Tomar o cuidado como acontecimento implica em que,  em ato, o olhar de quem cuida, mesmo que armado, e o de quem é cuidado, se singularizam no instante do encontro (mesmo que em seguida venham a ser capturados por lógicas já instituídas), sendo produtores de outros sentidos (para o adoecimento, para a dor, para o sofrimento, para o trabalho, para a vida). O encontro em sua dimensão intercessora ativa seu caráter de devir, deriva e desacomodação, onde nada se preserva como antes do próprio ato11. Intercessão é mútua produção, pois o cuidado não é o ato, mas sim o acontecimento (não como acidente ou incidente, mas nisso o puro expresso, aquilo nos dá o sinal, o que deve ser compreendido, o próprio sentido em produção)12,13. Entendemos que as cenas de EPS operaram como máquinas de transver nessas pesquisas: deram visibilidade-dizibilidade às disputas entre diversos projetos – ou ausência deles – em jogo, aos marcadores de poder14. Não é de se admirar que, nesses cenários, seja preciso pactuar o que se entende por “aposta”, ou o modo de entrada dos (as) pesquisadores (as) nesses encontro: eles (elas) assumem que se produzirão em ato, na experienciação, em meio aos atravessamentos de suas próprias implicações com o tema da pesquisa, “no entre do saber e fazer”4 (p. 28). CONSIDERAÇÕES FINAIS. Sem intercessão não há encontro intercessor, e portanto não acontece o cuidado, já que este é um acontecimento e não um ato. Nesse caso, também se perde a possibilidade de investigação de certos planos de produção da vida cotidiana em saúde. Nesse sentido, transver, por meio dessa máquina que é a cena de EPS, seria dar visibilidade e dizibilidade às multiplicidades que dão existência e sentido a essa produção.

Palavras-chave


educação permanente em saúde; pesquisa interferência

Referências


1. Gomes MPC, Merhy EE (Orgs). Pesquisadores IN-MUNDO: um estudo da produção do acesso e barreira em saúde mental. (Coleção Micropolítica do Trabalho e o Cuidado em Saúde) Porto Alegre: Rede UNIDA, 2014. 176 p.

2. Feuerwerker LCM, Merhy EE. A contribuição da atenção domiciliar para a configuração de redes substitutivas de saúde: desinstitucionalização e transformação de práticas. Rev Panam Salud Publica. 2008; 24 (3):180–8.

3. Slomp Junior H, Feuerwerker LCM, Land MGP. Educação em saúde ou projeto terapêutico compartilhado? O cuidado extravasa a dimensão pedagógica. Ciênc. saúde coletiva [serial on the Internet]. 2015  Feb [cited  2015  Mar  16] ;  20( 2 ): 537-546.

4. Merhy EE et al. Pesquisa Saúde Mental – acesso e barreira em uma complexa rede de cuidado: o caso de Campinas Processo 575121/20084. Relatório Final. CNPq, 2011.

5. Merhy EE et al. Rede de avaliação compartilhada (RAC) / Observatório nacional da produção de cuidado em diferentes modalidades, à luz do processo de implantação das redes temáticas de atenção à saúde no Sistema Único de Saúde: avalia quem pede, quem faz e quem usa. Relatório parcial de pesquisa. 2014.

6. Deleuze G, Guattari, F. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34 (Coleção TRANS), 2010, 560 p.

7. Barros M. Livro sobre o Nada. Rio de Janeiro, São Paulo: Ed Record, 2002, 85p.

7. Foucault M. História da Sexualidade Volume I: a Vontade de Saber, 3a Edição, Ed Graal, 2000, p.244.

8. Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec, 2002. 3ª Ed. Saúde em Debate 145, 189 p.

9. EPS EM MOVIMENTO. De um ponto a outra: Ponto de Cultura e a Educação Permanente em Saúde. 2014. Disponível em: <http://eps.otics.org/material/entrada-textos/de-um-ponto-ao-outro-ponto-de-cultura-e-a-eps/>. Acesso em: 18  ago. 2015.

10. EPS EM MOVIMENTO. Entrada cenas. Disponível em: <http://eps.otics.org/material/entrada-cenas>. Acesso em: 18  ago. 2015.

11. Rodrigues HBC.  Intercessores e Narrativas : Por uma Dessujeição Metodológica em Pesquisa Social, Revista Pesquisas e Práticas Psicossociais 6 ( 2), São João Del Rei, agosto/dezembro 2011.

12. Merhy EE. O ato de cuidar: a alma dos serviços de saúde. In: Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Ver – SUS Brasil: cadernos de textos. Brasília: Ministério da Saúde, 2004, p.108-137. (Série B. Textos Básicos de Saúde).

13. Deleuze G. Lógica do Sentido, 2a Edição, Ed Perspectiva, SP p. 152.

14. Tallemberg CAA. Passagens de uma prática clínico-política menor: tese-ensaio sobre o processo de desinstitucionalização do hospital psiquiátrico estadual Teixeira Brandão. Rio de Janeiro, 2015. Tese (Doutorado em Ciências) – Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.