Rede Unida, 12º Congresso Internacional da Rede Unida

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AMBIGUIDADES NA EXPERIÊNCIA DE CUIDADO DA PESSOA IDOSA HOSPITALIZADA: VIVÊNCIAS DE FAMILIARES ACOMPANHANTES
Camila Calhau Andrade Reis, Edmeia Campos Meira, Tânia Maria de Oliva Menezes, Edite Lago da Silva Sena

Última alteração: 2015-11-23

Resumo


APRESENTAÇÃO: O Brasil exibe, atualmente, um perfil populacional do tipo em transição demográfica, em que o número de pessoas idosas cresce em ritmo maior do que o número de pessoas que nascem. Simultaneamente ao crescimento quantitativo de idosos brasileiros, evidencia-se o aumento da demanda destes nos serviços públicos hospitalares. Isso justifica-se pelo fato de que envelhecer ainda é caracterizado pelo surgimento de fragilidades, doenças crônicas e descompensações que podem levar a frequentes hospitalizações. A vivência da hospitalização pode tornar-se menos difícil e traumática para o idoso, mediante a presença de um familiar acompanhante. Entretanto, estudos disponíveis na literatura que tratam de familiares acompanhantes com foco na gerontologia, geralmente versam sobre concepções acerca da experiência de cuidado que convergem para teses e emissão de juízo de valor sobre as vivências. Contudo, sob a ótica da fenomenologia de Merleau-Ponty, pressupomos que tornar-se familiar acompanhante de um idoso hospitalizado, implica em vivenciar experiências ambíguas, ou seja, em um mesmo cuidado é possível experimentar sentimentos até então categorizados como “bons” ou “ruins”, o que repercute na experiência da coexistência. Desse modo, a hospitalização, enquanto impactante vivência, pode contribuir para a ressignificação das relações de cuidado, na perspectiva de que o sofrimento do idoso passa a ser também do familiar que cuida. O estudo apresenta como objetivo principal: desvelar ambiguidades na experiência de cuidado da pessoa idosa hospitalizada a partir das vivências de familiares acompanhantes. DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO Este estudo constitui-se parte da dissertação: Vivências de familiares acompanhantes de idosos hospitalizados: um olhar fenomenológico. Trata-se de um estudo qualitativo, fundamentado na fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty. Foi desenvolvido em um hospital regional de grande porte, no município de Jequié, Bahia, Brasil. Os participantes foram cinco familiares acompanhantes de pessoas idosas hospitalizadas, que assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e que atenderam ao critério de inclusão: ser o cuidador principal de um idoso internado por, pelo menos, sete dias. Para a produção das descrições vivenciais, utilizou-se a roda de conversa, um recurso metodológico que admite as interações e o diálogo como um rico material de pesquisa e que prioriza discussões em torno de um tema específico. A partir do diálogo, os participantes podem posicionar-se e influenciar o outro a falar e a ouvir, o que caracteriza a intersubjetividade inerente aos estudos fenomenológicos. Com o auxílio de um roteiro previamente elaborado, duas rodas foram realizadas em março de 2014, com a duração média de uma hora e trinta minutos cada. Um gravador digital foi utilizado para registro das informações e posterior possibilidade de transcrição. As descrições vivenciais foram submetidas à analítica da ambiguidade, técnica elaborada para compreender textos empíricos originários de pesquisas fundamentadas na fenomenologia de Merleau-Ponty. O estudo atendeu às normas da resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde que dispõe sobre a realização de pesquisas científicas envolvendo seres humanos e, foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), sob protocolo nº 518.99/14. Em respeito ao anonimato das participantes, cada uma escolheu um codinome relacionado a sentimentos vivenciados nos últimos dias: Saudade, Amor, Tristeza, Ansiedade e Preocupação. RESULTADOS E IMPACTOS Todos os participantes eram do sexo feminino, filhas, com idades entre 33 e 57 anos. Os relatos desvelaram que as familiares acompanhantes podem vivenciar sofrimentos ambíguos em três dimensões. A primeira dimensão associa-se ao fato de a relação humana engendrar o sentimento de coexistência e, quando se trata da intersubjetividade no domínio do cuidado pais-filhos e vice-versa, em situação de sofrimento, essa coexistência aparece de forma mais intensa. Assim, após a hospitalização do idoso e, à medida que se experimenta a coexistência, são comuns vivências ambíguas: Eu a via sentindo dor e não podia fazer nada [...] e aquilo me doía tudo por dentro também [...] agora ela não está mais sentido dor e eu senti um alívio [...] Tempos atrás fui a uma festa, ao chegar, ela sentia muita dor[...] fiquei triste, estava alegre e fiquei triste (Amor). As ambiguidades desveladas, numa perspectiva fenomenológica, nos mostram que o cuidar opera numa relação reversa entre quem cuida e quem é cuidado, afetando ambas as partes. A segunda dimensão de sofrimento refere-se ao cuidado pelo dever moral. O não cumprimento, por parte da família, do cuidado aos mais velhos e doentes, implica em exposição ao julgamento social, o que, a depender da formação cultural dessa família, poderá, também, comprometer a saúde do acompanhante da pessoa idosa: [...] ninguém tem paciência, a gente fica porque não tem jeito! [...] essa é uma obrigação de filho! Ela não cuidou de mim? Não lavou o meu bumbum? Hoje eu lavo o dela [...] (Ansiedade). A fala revela um saber instituído operante em favor da cultura e fortalece o dever moral, estabelecido pelo mundo sociocultural, incorporado e transmitido entre gerações. O dever moral orienta, de maneira ambígua, a intencionalidade das condutas humanas e, nesse caso, do cuidado ao outro. Relaciona-se à cultura, hábitos e à preocupação com a forma pela qual o meu semelhante me vê. Por fim, a terceira dimensão de sofrimento refere-se ao descuido no contexto do hospital, refletido pela falta de ambiência para o usuário e seu cuidador: [...] sinto-me triste no hospital, parece que a gente está em uma prisão [...] dormi sentada em um banquinho (Tristeza). A realidade é uma só: bom não é (estar no hospital), mas é uma coisa necessária (Preocupação). A vivências revelaram cuidadoras que passaram dias, meses completamente “invisíveis”, adoecendo em um local que, essencialmente, deve promover saúde. Diante dessa realidade de ambiguidades, dialogar com franqueza, acolher de maneira generosa e escutar atentamente configuram-se como virtudes fundamentais a serem exercidas pela equipe de saúde junto ao familiar acompanhante para a construção de vínculos que direcionarão ao cuidado integral e humanizado. CONSIDERAÇÕES FINAIS Embora tenhamos organizado as vivências em três dimensões de sofrimentos ambíguos, numa merleau-pontyana, elas não podem possuir uma conotação negativa, pois toda experiência permite a abertura ao outro. Nos sofrimentos “visíveis”, há possibilidades “invisíveis” de transcendência e ressignificação das relações, tanto de quem cuida, como de quem é cuidado. O estudo mostrou-nos como é importante que os profissionais de saúde reconheçam os contextos de intersubjetividade que se estabelecem no domínio hospitalar e como estes se configuram espaços de produção de cuidado. Esse reconhecimento engloba a noção de humanizar como articuladora entre cuidado, tecnologias e relações humanas, envolvendo usuários do serviço, acompanhantes e profissionais, de maneira que todas as necessidades sejam ouvidas, percebidas e entendidas, o que convergirá para o cuidado humanizado. Portanto, consideramos que as ambiguidades desveladas possuem o potencial de abrir caminhos à ressignificação do familiar cuidador por parte da equipe multiprofissional, de modo que estratégias de cuidado voltadas para o acompanhante se consolidem, tendo por base tecnologias relacionais como o diálogo, o acolhimento e a escuta.

Palavras-chave


idoso; hospitalização; cuidadores.

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