Rede Unida, 12º Congresso Internacional da Rede Unida

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‘A gente acha que nunca vai precisar’: Dilemas e barreiras na captação de doadores de sangue
Sheila Kocourek, Vanessa Carla Neckel

Última alteração: 2015-10-28

Resumo


APRESENTAÇÃO: Os programa de Residências Multiprofissionais, assumem relevo na formação continuada de profissionais da saúde, desenvolvendo competências de assistência e gestão de modo interdisciplinar, intersetorial e interinstitucional. Este trabalho relata a experiência junto ao Programa de Residência Multiprofissional em Gestão Hospitalar, tendo como objetivo problematizar as vivências dos usuários hemato-oncológicos do Hospital Universitário de Santa Maria – HUSM,  que necessitaram de transfusão de sangue, com vistas a visibilizar o impacto desta demanda no cotidiano destes sujeitos. Os resultados do estudo apontam para uma realidade na qual os usuários são responsabilizados pela captação de doadores de reposição sem apoio dos gestores e serviços públicos de saúde.   Desenvolvimento do trabalho: método do estudo   Apesar de todos os avanços da tecnologia em saúde ao longo dos anos, até o momento, o sangue e os hemocomponentes são insubstituíveis. O suporte hematológico, por meio da transfusão de sangue e de plaquetas, é imprescindível para o tratamento do câncer. A propósito são inúmeras as repercussões que o câncer impõe na reorganização da dinâmica familiar, no desenvolvimento de novas atividades cotidianas, devido à hospitalização e aos cuidados e tratamento relacionados à doença. A responsabilidade pela reposição das bolsas de sangue emerge como mais uma atribuição às famílias e aos usuários. No cotidiano do HUSM a responsabilidade pela captação de doadores para a prática da reposição do sangue utilizado pelo usuário é delegada parcial ou totalmente às famílias. Deste modo, este trabalhou teve como intenção proporcionar escuta dos familiares e usuários hemato-oncológicos sobre suas vivências, experiências e angústias no processo de captação de doadores de sangue. A população estudada foi de usuários das unidades de internação adulta, pediátrica e de transplantados de serviço de hematologia-oncologia HUSM, que permaneceram hospitalizados em algum período compreendido entre maio de 2012 e junho de 2013. A amostra foi delimitada por meio de relatórios do sistema de informação, gerados pelo serviço de hemoterapia da instituição, com os quais se obtiveram dados que sugeriram o perfil inicial dos receptores de sangue. A partir do total de sujeitos que receberam uma ou mais bolsas de sangue, selecionou-se uma amostra intencional de 20% dos usuários, tratando-se dos que mais necessitaram transfusão sanguínea, ou seja, mais de 50 bolsas, individualmente. A amostra inicial foi composta por 29 sujeitos, os quais seriam entrevistados com um instrumento composto de perguntas fechadas e abertas. Fazendo a busca ativida identificou-se que 9 foram a óbito antes da realização do estudo, 4 não foram localizados, tendo sido realizadas no total 16 entrevistas: 10 com usuários adultos, 1 com usuário adolescente e 5 com mães de usuários infantis. A análise das informações das entrevistas, deu-se por meio da análise do discurso, elegendo temas geradores, os quais serviram para sintetizar, analisar, dar sentido a estas e interpretar as particularidades do assunto pesquisado. Quanto aos aspectos éticos, o estudo obedeceu ao preconizado na Resolução nº 466/2012 do Ministério da Saúde, sendo apreciado e aprovado pelo comitê de ética da instituição de origem.   Resultados encontrados na pesquisa;   Os resultados do estudo demonstraram no serviço de hemato-oncologia do HUSM, que 146 usuários demandaram transfusão sanguínea, os quais receberam de 1 a 286 bolsas de sangue, perfazendo uma média de 31,2 bolsas/usuário/ano, no período pesquisado. Os entrevistados relataram que se depararam com a demanda de repor o sangue e os hemocomponentes por meio de um profissional de saúde que lhes entregou um “bilhetinho”. A cobrança e a necessidade da doação de reposição foram verbalizadas. Só deu um bilhetinho e falou que precisava de sangue (E.G)[...]o choque mesmo de receber aquela notícia, ‘olha, precisa de tantos doadores’.(E.A) As orientações se limitam à exigência da obtenção de doadores indicados para o abastecimento do estoque do hospital. A necessidade de conseguir tais doadores foi mencionada como fator de apreensão. Os entrevistados externalizaram os sentimentos de responsabilização com o processo de captação de doadores de sangue. É, para me salvar sim, para o meu tratamento precisava não tem outro tipo, sabe a leucemia se você não tiver sangue bom, ai você vai. Se as plaquetas fechar com um mil ou dois mil por causa da radioterapia e as quimioterapia quando terminava e depois tinha que colocar plaqueta e sangue, não tinha alternativa. Colocar água? Sofri para bicho é ai que o cara sente na pele o que é faltar sangue.(E.C)   Para cumprir o imposto, os usuários e suas famílias mobilizaram as redes de apoio social primária e secundária. Acionaram estratégias tradicionais e criativas para resolverem a demanda imposta. Quando eu soube eu liguei pro pai dele, pra minha família [...] Daí eles arrumaram um carro, como puderam.(E.I) O meu filho pegava o papel no hospital e levava para o quartel.(E.L) Anunciamos no rádio e redes sociais.(E.G) Eu fui de casa em casa.(E.B)   Considerando que muitos usuários e familiares são de outros municípios e regiões do estado, referiram que buscaram o apoio das Secretarias de Saúde dos seus municípios de origem, para o transporte dos doadores, divulgação e sensibilização, contudo, muitas foram as dificuldades e os empecilhos identificados, conforme relato: Ai, a nossa prefeitura tá péssima. [...] Bom, eles não queriam nem dar carro pra trazer doadores. [...] Parece que de última hora eles forneceram. Tinha doadores, né, aí a prefeitura não queria fornecer, aí de última hora eles deram.(E.A) As famílias encontram barreiras onde deveriam encontrar a assistência integral, no que se refere à concretização do direito à saúde, demonstrando dupla fragilidade do Estado.   Considerações Finais O estudo teve como principal objetivo dar voz aos familiares e usuários hemato-oncológicos sobre suas vivências, experiências e angústias no processo de captação de doadores, onde transfusão é sinônimo de sobrevivência.  A necessidade do aumento da doação voluntária é indiscutível e, ainda assim, tem baixa visibilidade no âmbito da assistência e da gestão em saúde. A responsabilização das famílias pela reposição do sangue vem na contramão das legislações e do entendimento dos profissionais críticos da saúde, que defendem que a demanda deve ser compartilhada com a rede de atenção à saúde. Amorim Filho (2000 apud Laval, 2007) qualifica esse sistema de reposição como perverso, pois transfere, para os que vivem a situação de estresse da internação, a obrigação de prover o hospital. Os resultados apresentados sinalizaram essa sobrecarga. Os relatos revelaram a fragilidade e as deficiências entre os diferentes níveis de atenção à saúde no suporte aos familiares e aos usuários, intensificando as responsabilidades com o processo de captação de doadores. Fica clara a necessidade de participação ativa do Estado na consolidação de uma hemorrede pública que garanta o fornecimento de sangue e de componentes em quantidade e qualidade para a população que deles necessitar. Conclui-se que a demanda por sangue e hemocomponentes, na perspectiva dos familiares e usuários, está invisibilizada nas políticas públicas e na sociedade, uma vez que o usuário só percebe esta necessidade quando se vê imerso neste cenário. Por isso, escolheu-se como título a fala de um usuário, “a gente acha que nunca vai precisar”, não pela onipotência das pessoas, mas especialmente pelas dificuldades mediante o desafio de repor o sangue.

Palavras-chave


Residência Multiprofissional, Hemato-oncologia, Hemorrede