Rede Unida, 12º Congresso Internacional da Rede Unida

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DESENHOS QUE CURAM: A AÇÃO PROTETIVA DAS PINTURAS FACIAIS BORORO
Júnior José da Silva

Última alteração: 2015-11-23

Resumo


O trabalho apresentado corresponde a uma pesquisa vinculada ao programa de pós-graduação em antropologia da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), como procedimento de estudo foi adotado o método etnográfico que compreende uma pesquisa de campo, na qual é feita a coleta de dado a partir da observação-participante, posteriormente, a análise dos materiais coletados para, finalmente, realizar a escrita do texto. Trata-se, portanto, de uma ciência interpretativa, que concebe o seu objeto de pesquisa a partir de um conjunto de complexos elementos que se encontram interligados, a esse emaranhado de informações Geertz (2011) chamou de teia de significados, que precisa ser decodificada pelo pesquisador, pois a exemplo de um texto, os dados que compreendem uma cultura também necessitam ser lidos e interpretados, levando em conta todos os aspectos que a compreendem. O objetivo do texto é apresentar uma análise da cultura imaterial que compõe a produção artística dos índios Bororo, destacam-se nesse contexto os traços e elementos que compõem a pintura facial, buscando, por meio desta, colocar em discussão quatro aspectos fundamentais: 1) a ação simbólica do grafismo na cosmologia Bororo; 2) o protagonismo da comunidade na construção do corpo e da pessoa; 3) os elementos preventivos e de cura da pintura facial e a interface do funeral; e 4) o papel desse saber tradicional como mecanismo no diálogo com a medicina não indígena. Os limites geográficos que compreendiam o antigo território ocupado pelos Bororos estendiam-se da Bolívia até as proximidades do Rio Araguaia, ao Sudeste do estado de Goiás. Ao Norte, chegaram a manter contato com os índios Xavante e Kayapó, que circundavam a região do Rio das Mortes, e para ao sul se estendia até o Rio Taquari. Estima-se que, aproximadamente, 10 mil indígenas Bororo ocupavam essa região. Ao longo de três séculos, tal contingente populacional, sofreu drásticas reduções, efeito de danosas e longas relações estabelecidas com o não índio, sendo marcadas por surtos de epidemias, guerras, introdução de bebidas alcoólicas, etc. O censo realizado pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) em 1932 indicou um elevado grau de vulnerabilidade da etnia, que na época totalizavam 316 indivíduos e apontava para uma alta taxa de mortalidade infantil. Darcy Ribeiro (1970) chegou a afirmar que os Bororo encontravam-se em uma avançada etapa do processo de extinção. Atualmente, concentrados na região do planalto central de Mato Grosso o grupo Bororo, Boe como se autodenominam, possuem, aproximadamente, uma população de 2.000 indivíduos, divididos em seis terras indígenas (T.I’s): Meruri; Perigara; Tadarimana; Jarudori; Teresa Cristina e Sangradouro/Volta Grande, mantem a produção artística como uma das atividades importantes da sua sociedade, que se organiza a partir de uma lógica clânica, na qual existe uma determinação estabelecida pelos grupos rituais para a utilização dos ingredientes, materiais, traços gráficos, cores e plumárias. Segundo Albisetti e Venturelli (1962) as pinturas faciais assumem três finalidades básicas: ornamentação, tratamento de doenças e preventivo para malefícios. A utilização destes grafismos perpassa toda a vida ritual e cotidiana da aldeia, sendo introduzido durante o rito de nominação, momento no qual a criança tem o corpo todo emplumado, deixando apenas a face descoberta para que possa receber um Ie (palavra bororo que significa nome de vida, porta do corpo e rosto). O xamã, no momento oportuno do ritual, sopra a face da criança e a decora, pois o rosto para o Bororo é a porta do corpo, através do qual as doenças e maus agouros tem acesso, daí a necessidade de pintá-lo, escondê-lo e protegê-lo, garantindo, assim, maior segurança para todo o corpo. Para além de toda a estrutura cosmológica presente no rito, vale destacar o protagonismo da comunidade na formação e construção do novo indivíduo social e o papel da corporalidade nesse contexto, uma vez que a pessoa carregará no seu corpo as marcas de pertencimento e identificação com o grupo, transmitidas durante os ciclos da vida, seja no dia-a-dia da aldeia ou nos rituais de passagem e iniciação. A esse processo Castro (1979) chamou de fabricação de corpos, pois para muitas sociedades indígenas brasileiras as características adquiridas pelo indivíduo ao longo do seu crescimento, não são concebidas por meio de determinação genética ou biológica, mas sim fabricadas pela comunidade, ou seja, corpo e pessoa são moldados, esculpidos segundo as prerrogativas e estilos do grupo. Destaca-se ainda, a especificidade daquilo que pode ser entendido por cura, que na perspectiva Bororo ganha outra dimensão dada à complexa ligação deste grupo indígena com a morte, pois a pessoa Bororo é construída de tal forma que sua essência só existe plenamente depois de morto, quando é representado por outro durante o funeral. O período do desenlace do agonizante já é marcado por uma série de eventos que culminarão no início do ritual em si. Os parentes cortam os cabelos do doente e o ornamentam, cobrindo-o da cabeça aos pés com plumas (do mesmo modo como é feito no ritual de nominação), fazem pinturas faciais, de acordo com o clã, como se o estivessem vestindo para uma grande festa. Viertler (1991) considera o funeral como uma grande cerimonia de cura para a maior de todas as doenças, a morte, doença irreversível e de profundas consequências para os sobreviventes. Durante as caças e pescarias “das almas”, que servem de fonte para a manutenção dos funerais, os jovens, responsáveis por essas práticas, devem se fortificar com pinturas que lhes escondem o rosto, um tipo de remédio que deve ser também passado pelo corpo e nas armas. Além de provocar modificações na estrutura doméstica e ritual da aldeia, o funeral, envolve-se de representações religiosas ligadas ao mundo sobrenatural, exigindo grande cuidado por parte dos participantes, a fim de evitar eventuais “castigos”, pois a noção de culpabilidade está intimamente ligada à inobservância do comportamento religioso-tradicional. Deste modo, cantos, enfeites, objetos, ritos e os desenhos faciais, devem ser todos realizados com a máxima atenção. O estudo também mostrou que no contato com a ciência não indígena, tais saberes ainda precisam ser tratados com maior atenção, pois é comum ver idosos, jovens ou mesmo crianças que, utilizando das pinturas protetivas, ao necessitarem de um atendimento médico ter seus rostos lavados e os grafismos removidos sem nem ao menos serem perguntados da importância de tais desenhos. Por fim, a pesquisa da linguagem simbólica que perpassa a arte indígena, evidenciou que a pintura facial, no caso específico Bororo, para além de refletir a busca dos membros de dada sociedade em atribuir significado à suas ações, torna-se um poderoso veículo de expressão de identidade e afirmação étnica, mostrando a singularidade dos saberes tradicionais de um grupo em relação a outros e fazendo destes saberes um instrumento valioso no diálogo entre suas práticas protetivas e de cura com a medicina não indígena.

Palavras-chave


Saberes indígenas; Bororo; Pintura Facial; Cura.

Referências


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