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Os encontros na rua: possibilidades de saúde de um consultório a céu aberto
Última alteração: 2015-11-26
Resumo
Introdução: Segundo a Política Nacional para a População em Situação de Rua, essa população é definida como um grupo populacional heterogêneo, composto por pessoas com diferentes realidades, que têm em comum a condição de pobreza extrema, vínculos interrompidos ou fragilizados e falta de habitação convencional regular, sendo compelida a utilizar a rua como espaço de moradia e sustento, por contingência temporária ou de forma permanente. Essa população se caracteriza pela utilização de logradouros públicos (praças, jardins, canteiros, marquises e viadutos) e áreas degradadas (prédios abandonados, ruínas e carcaças de veículos) como espaços de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como unidades de serviços de acolhimento para pernoite temporário ou moradia provisória. A produção do cuidado voltado a este segmento populacional precisa considerar este cenário de vida em desigualdade social, contemplando as necessidades de saúde desta população com a elaboração e implantação de estratégias que lhes digam respeito, sem “higienizar” sua condição com medidas corretivas ou compensatórias. Consultório na Rua: Nosso pensar e fazer Populações na rua existem em todas as cidades, ao longo dos tempos, envolvendo deficientes, loucos, alcoolistas, hippies, desempregados, subempregados e pedintes, diversos tipos de miseráveis (ex-presidiários, refugiados, fugitivos e bandidos), além de travestis, prostitutas e michês. As pessoas na rua aumentaram com a concentração populacional nos grandes centros urbanos e as agudas desigualdades sociais produzidas pela concentração de riquezas no mundo capitalista e pela falta de emprego e escola para todos. A clivagem social entre pobres e ricos e o modelo de cidade do capital levou a que crescentes grupos de indivíduos se utilizassem das ruas como moradia. A população em situação de rua começa a receber atenção política pelo aumento de seu contingente, pela sua emergente organização como movimento social e pela presença das drogas, especialmente o crack. O incremento da população em situação de rua, relacionado à exclusão social, revela o contingente de pessoas que não obteve – de maneira bem-sucedida – inclusão no modelo econômico do capitalismo neoliberal. A condição de exclusão social convida para o uso intensivo do álcool, crack e outras drogas, condição que, somada à situação de rua, vem configurada pelo estigma (marginais, criminosos e mendigos). O Consultório na Rua veio para substituir a modelagem que se pautava na hegemonia do consultório médico-assistencial, sob parâmetros da saúde pública e cuidados biomédicos, devendo abandonar a lógica da demanda formalmente instituída pela busca espontânea ou da vigilância epidemiológica e o cuidado de condição caritativa, assim como a abordagem única da abstinência quanto ao consumo de drogas. Na sua oferta, foi considerada a vulnerabilidade a que estão expostas as populações de rua, agravada pelo uso de drogas, bem como pelas dificuldades em aderir aos modelos tradicionais de serviços da rede de saúde. Entre os profissionais relacionados para atuarem em CnaR estão: agente social, assistente social, enfermeiro, médico, psicólogo, técnico em saúde bucal (com supervisão de odontólogo), técnico em enfermagem e terapeuta ocupacional. Para as atividades do CnaR Pintando Saúde, do Grupo Hospitalar Conceição, protagonista do presente trabalho, um veículo de 15 lugares, 2 telefones celulares, cota de lanches e sucos, estoque de preservativos, material de enfermagem para curativos e administração de medicamentos, kit teste rápido de HIV/Sífilis e alguns dos medicamentos que podem ser prescritos por enfermeiro, conforme protocolo institucional. Não possui médico e nem profissionais de saúde bucal. As atividades de trabalho da equipe são divididas por microequipes, conforme a combinação de aproximadamente três pessoas por microárea, atuantes em dias fixos da semana, como estratégia de vinculação com a população (rotina de território). Atualmente são abordadas 5 microáreas na zona norte de Porto Alegre, definidas a partir de um mapeamento do território físico e de relações (coletivos distintos de pessoas em relação aos modos de viver na rua, predomínio de gênero, atividades na rua e tipos de substância psicoativa prevalente). A atividade da equipe não se detém apenas à abordagem de rua, pois quando necessário e, com a vontade do usuário, os trabalhadores fazem a inserção e acompanham tais moradores junto aos serviços necessários para a efetivação do projeto terapêutico singular, prevenindo e reduzindo danos, associados ou não ao uso de substâncias psicoativas. A ideia é fugir da vigilância epidemiológica e da clínica de modelo psiquiátrico. As principais características a serem destacadas nessa metodologia de trabalho são a abordagem ao usuário no local onde ele se encontra (in loco), levando em consideração que o setting é a rua, isso por sua vez exige ou instiga a uma atuação da equipe que avalie as condições de vida, facilite o seu acesso à rede de serviços do município, ofereça assistência multi e interdisciplinar, proteção à cidadania e dignidade e incentive a elevação dos padrões de qualidade de vida. Resultados: Numa das microáreas abordadas, que tem predominantemente o gênero feminino, encontram-se mulheres com moradias fixas outras não, no território ou fora dele. Trabalham com o sexo ou prostituição de rua, fazendo uso de crack, associado ou não ao álcool. As atividades de CnaR demandadas nesta microárea abrangem a distribuição de preservativos, teste rápido de HIV e sífilis, exames para confirmação de gravidez e DST, aplicação de contraceptivo injetável, curativos, documentação de identidade, acompanhamento nas emergências psiquiátricas, redução de danos nutricional, acompanhamento de pré-natal e diálogo terapêutico com os profissionais (uma forma não só de escuta, mas de vinculação). Concomitantemente, outra microárea abordada semanalmente apresenta uma população predominantemente masculina, habitantes de uma praça para onde a equipe pode se deslocar para o atendimento. Fazem uso do álcool como principal substância psicoativa e também demandam orientação e cuidados para a contracepção e prevenção das DST/Aids. Outras microáreas abordadas semanalmente têm públicos mais mistos, circulam ou moram, se fixam ou estabelecem movimentos pendulares com outros espaços da zona norte, conforme oportunidades de obtenção de alimento, dinheiro, abrigo e atendimento de demandas em higiene e eliminações. Depois de levantadas as necessidades individuais de saúde, a partir da abordagem em grupos, o trabalhador de referência da microárea, quando não pode realizar procedimentos necessários marca com o usuário uma data para o contato com a equipe que possa melhor acompanhá-lo. Quando se faz necessário acessar a rede de saúde, prioriza-se a rede de atenção primária, mas as Unidades de Pronto-Atendimento e as Emergências se tornam lugares mais acessíveis pela não exigência de documentação de identificação ou comprovante de residência. Para organizar os processos de trabalho, conhecer estatisticamente os usuários atendidos pelo serviço e descrever a produtividade em ações e procedimento de atenção à saúde, em 2013 o CnaR reformulou sua “planilha de abordagem” para otimizar o ingresso de dados e o seu acesso para fins de descrição e avaliação. Percebemos que além da necessidade de atender essa população com relação ao uso de crack, álcool e outras drogas; contracepção, prevenção de DST/Aids, redução de danos pela desnutrição e desidratação, havia necessidade de planejar ações de uma saúde ampliada e referida à qualidade da vida. Procedeu-se ao registro por nome completo, idade, raça, procedimentos realizados pela equipe, informes do acesso às demais redes e espaço livre para registro de pactuações ou outras informações pertinentes. O formulário era preenchido em acordo com os usuários, sem o ritual do registro obrigatório e documentos comprobatórios. Do total de 736 usuários cadastrados, a distribuição por gênero foi de 64% homens, 36% mulheres. A variação de idade somente pode ser considerada com a amostra de 243 indivíduos que a informaram ou sabiam informar, a máxima foi de 62 e a mínima de 2 anos de idade. Sobre o acompanhamento dos usuários na rede de saúde, constatou-se 21 pessoas conduzidas à internação hospitalar: 29% em internação de clínica geral, 47% em internação psiquiátrica e 24% outras. No âmbito do requerimento de atendimento de urgência, 19 pessoas foram levadas aos serviços de pronto atendimento e emergências; 16% foram para emergência geral, 56% emergência de saúde mental e 26% emergências psiquiátricas. Do total de 1.829 procedimentos estratégicos realizados exclusivamente pela equipe, os três mais frequentes foram o “diálogo terapêutico” (62%); a entrega de preservativos (13%) e a redução de danos nutricionais (9%). Na esfera dos atendimentos programados, foram contabilizadas 1.306 ações: abordagem na rua (78%), busca programada (9%), visita institucional (6%), visita a familiares (5%) e demanda espontânea (2%). Atividades como reuniões semanais de equipe fazem parte do serviço e visam propiciar momentos de fortalecimento dos laços de equipe, a educação permanente, discussão de casos, compartilhamento de ações e intervenções a serem realizadas no território e promoção da gestão coletiva na construção das estratégias de saúde a serem implantadas. Um projeto contínuo que a equipe acompanha semanalmente é o programa de rádio “Quartas Intenções”, programa que tem duração de uma hora, dentro da rádio comunitária da Associação de Moradores. O programa se destina aos usuários e ex-usuários de todos os serviços de saúde mental e aos moradores de rua vinculados ao CnaR, sendo um espaço onde obtêm oportunidade de interagir e serem ouvidos.
Palavras-chave
Saúde Pública. População de Rua. Serviços de Saúde