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O OLHAR DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE SOBRE O USUÁRIO DE ÁLCOOL E A INVISIBILIDADE DAS REDES VIVAS NA PRODUÇÃO DO CUIDADO
Última alteração: 2015-10-30
Resumo
O presente trabalho tem como objetivo lançar um debate sobre a invisibilidade dos profissionais de saúde frente à potência de vida de usuários de álcool e outras drogas e sua implicação para a produção do cuidado que fortaleça as conexões de vida do sujeito. Trata de um produto da interferência da pesquisa Observatório Nacional da Produção do Cuidado à luz das redes temáticas do SUS: avalia quem pede, quem faz e quem usa, financiada pelo Ministério da Saúde, e desenvolvida junto com profissionais da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) de João Pessoa. A interferência que a pesquisa produz é marcadamente a possibilidade, construída no encontro entre universidade e profissionais de saúde, de colocar em análise o trabalho cotidiano à luz da produção do cuidado, tornando todos os sujeitos nele envolvidos pesquisadores e avaliadores desta produção (GOMES; MERHY, 2014). Neste movimento de educação permanente inerente à perspectiva de pesquisa compartilhada ora assumida, são produzidos novos olhares para o cuidado, para o trabalho e para os sujeitos neles envolvidos, sejam pesquisadores, profissionais ou usuários. Assim, esta pesquisa-interferência se desenvolve a partir do acompanhamento do cuidado produzido no trabalho compartilhado entre um técnico do CAPS III de João Pessoa, dois 2 agentes comunitários de saúde (ACS) e uma enfermeira da equipe de saúde da família (eSF) para uma família com demanda em saúde mental. Este acompanhamento se desenvolve durante quatro horas semanais, entre os meses de fevereiro e agosto de 2015, sendo possível participar de reuniões do CAPS III e entre o profissional deste serviço e eSF, visitas domiciliares à família, produção de um projeto terapêutico compartilhado entre a matriarca da família e profissionais do CAPS III, CAPS ad, Consultório na Rua e NASF, além de realizar conversas com profissionais e usuários sobre suas experiências nesse processo de cuidado. Toda a experiência foi registrada em diário de campo pelas pesquisadoras e algumas conversas e reuniões foram gravadas com o consentimento dos sujeitos presentes, que assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), sendo atendidas todas as exigências éticas da Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde. Todo o conjunto de dados produzido nesses encontros foi processado em reunião com o grupo de pesquisa e com alguns trabalhadores mais diretamente nela envolvidos, tendo como suporte os referenciais teóricos da micropolítica do trabalho em saúde (CAMPOS; MERHY, 1996). Num primeiro momento, o CAPS III atende ao encaminhamento da família, realizando visita domiciliar, identificando três sujeitos com demanda em saúde mental e realiza a administração de medicação de depósito. Contudo, apesar da família, inicialmente e sob pressão dos profissionais, acolher esta oferta, deixa clara a recusa tanto do cuidado medicamentoso quanto institucional no CAPS. A partir dessa recusa, um profissional do CAPS passa a reunir-se com a ESF para pensar outras ofertas de cuidado territorializadas e neste momento é aberta a possibilidade de conhecer efetivamente a família. Foi possível, assim, dar ouvidos para as falas dos familiares e dos ACS que são da comunidade e convivem com a família desde a infância. Neste momento, é possível conhecer Negro-Gato, um dos membros da família que faz uso de álcool. Ele tem 40 anos e começou a beber abusivamente por volta dos 25 anos quando passou a trabalhar na companhia municipal de coleta de lixo, a partir da influência de colegas que bebiam para suportar o mal-cheiro do caminhão de lixo. Começou neste emprego com seu irmão que atualmente está para se aposentar nesta empresa, mas foi demitido anos depois por faltar o trabalho devido à bebida. Quando está consumindo álcool, passa a maior parte do tempo no mercado do bairro junto com outros viventes da rua. Tem um grupo de amigos que bebem no bairro e há relatos de que tem uma namorada neste grupo. Quando bebe álcool, preferencialmente cachaça, não gosta de comer nem beber água. Por isso, alguns dias depois fica bastante desidratado e emagrecido. Quando se percebe debilitado, Negro-Gato volta para casa e passa uns dias sem beber, se alimentando e hidratando. Ele também suspende a bebida quando consegue algum trabalho (bico), ou quando há alguma demanda de cuidado de sua família, como quando seu irmão faleceu, ou quando seu outro irmão lhe convocou para pintar a casa e para limpar o quintal. Também não bebeu quando a equipe de saúde agendou com ele uma visita. Ao dar visibilidade a esses movimentos de Negro-Gato, os profissionais puderam ver além de quem inicialmente era apenas mais um de uma família de loucos, sendo medicalizado pelo psiquiatra do CAPS. Permitiram-se conhecer, então, um sujeito que tem vida social e cuidado consigo e com a família que na nova concepção de saúde constitui-se um espaço potente na produção do cuidado (BRASIL, 2013) Foi possível então escutar e acolher sua demanda de cuidado, a partir da qual, mesmo reconhecendo que fazia uso danoso de álcool, não desejava abstinência, nem intervenção medicamentosa que lhe “deixava avoado”, sem conseguir trabalhar. Neste momento, foi possível à equipe reconhecer e demandar apoio para as equipes do Consultório na Rua e do CAPS ad, para a produção de cuidados mais sintonizados com os desejos de vida de Negro-Gato, que passava pela manutenção do uso do álcool e pela vivência na rua. A interferência da pesquisa se produziu em várias direções. Na equipe, que a partir da recusa de Negro-Gato a um determinado modo de cuidado, produz novos olhares sobre este sujeito. E em Negro-Gato que na última visita realizada pela pesquisa (pois a equipe de saúde continua com o cuidado), recebe seus cuidadores animadamente, de banho tomado, há dois meses sem beber e com alguns quilos a mais, afirmando que queria se cuidar. Portanto, este acompanhamento da produção do cuidado em saúde nos revelou que os sujeitos produzem a cada dia infinitas possibilidades e conexões de vida, com, sem, ou mesmo apesar, dos profissionais de saúde. Produzir um cuidado que reconheça e legitime a autonomia do sujeito no seu modo de levar sua vida, implica em reconhecê-lo protagonista de sua própria história e da produção de seu cuidado. Este reconhecimento, por sua vez, se torna possível quando o profissional se permite olhar o sujeito, pondo a doença entre parênteses, dando visibilidade para os diferentes modos dos sujeitos de inserirem-se no mundo e construírem suas redes vivas de cuidado.
Palavras-chave
cuidado; saúde mental; álcool e outras drogas
Referências
BRASIL, Ministério da Saúde. Cadernos de atenção básica: saúde mental. Editora MS. Brasília, 2013
GOMES, M.P.C; MERHY, E.E. Pesquisadores in-mundo um estudo da produção do acesso e barreira em saúde mental. Coleção micropolítica do trabalho e cuidado em saúde. Editora Rede Unida, Porto Alegre, 2014.
CAMPOS, R.O., MERHY, E.E. O agir em saúde um desafio para o público. Ed. Hucitec, São Paulo,1997.