Rede Unida, 12º Congresso Internacional da Rede Unida

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O OLHAR DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE SOBRE O USUÁRIO DE ÁLCOOL E A INVISIBILIDADE DAS REDES VIVAS NA PRODUÇÃO DO CUIDADO
Juliana Sampaio, Thayane Pereira da Silva Ferreira, Adelle Conceição do Nascimento Souza, Rinaldo Alves Batista, Dilma Lucena de Oliveira, Luciano Bezerra Gomes, Suely Mororó Marinho, Sandra Barbosa Ferraz

Última alteração: 2015-10-30

Resumo


O presente trabalho tem como objetivo lançar um debate sobre a invisibilidade dos profissionais de saúde frente à potência de vida de usuários de álcool e outras drogas e sua implicação para a produção do cuidado que fortaleça as conexões de vida do sujeito. Trata de um produto da interferência da pesquisa Observatório Nacional da Produção do Cuidado à luz das redes temáticas do SUS: avalia quem pede, quem faz e quem usa, financiada pelo Ministério da Saúde, e desenvolvida junto com profissionais da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) de João Pessoa. A interferência que a pesquisa produz é marcadamente a possibilidade, construída no encontro entre universidade e profissionais de saúde, de colocar em análise o trabalho cotidiano à luz da produção do cuidado, tornando todos os sujeitos nele envolvidos pesquisadores e avaliadores desta produção (GOMES; MERHY, 2014). Neste movimento de educação permanente inerente à perspectiva de pesquisa compartilhada ora assumida, são produzidos novos olhares para o cuidado, para o trabalho e para os sujeitos neles envolvidos, sejam pesquisadores, profissionais ou usuários. Assim, esta pesquisa-interferência se desenvolve a partir do acompanhamento do cuidado produzido no trabalho compartilhado entre um técnico do CAPS III de João Pessoa, dois 2 agentes comunitários de saúde (ACS) e uma enfermeira da equipe de saúde da família (eSF) para uma família com demanda em saúde mental. Este acompanhamento se desenvolve durante quatro horas semanais, entre os meses de fevereiro e agosto de 2015, sendo possível participar de reuniões do CAPS III e entre o profissional deste serviço e eSF, visitas domiciliares à família, produção de um projeto terapêutico compartilhado entre a matriarca da família e profissionais do CAPS III, CAPS ad, Consultório na Rua e NASF, além de realizar conversas com profissionais e usuários sobre suas experiências nesse processo de cuidado. Toda a experiência foi registrada em diário de campo pelas pesquisadoras e algumas conversas e reuniões foram gravadas com o consentimento dos sujeitos presentes, que assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), sendo atendidas todas as exigências éticas da Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde. Todo o conjunto de dados produzido nesses encontros foi processado em reunião com o grupo de pesquisa e com alguns trabalhadores mais diretamente nela envolvidos, tendo como suporte os referenciais teóricos da micropolítica do trabalho em saúde (CAMPOS; MERHY, 1996). Num primeiro momento, o CAPS III atende ao encaminhamento da família, realizando visita domiciliar, identificando três sujeitos com demanda em saúde mental e realiza a administração de medicação de depósito. Contudo, apesar da família, inicialmente e sob pressão dos profissionais, acolher esta oferta, deixa clara a recusa tanto do cuidado medicamentoso quanto institucional no CAPS. A partir dessa recusa, um profissional do CAPS passa a reunir-se com a ESF para pensar outras ofertas de cuidado territorializadas e neste momento é aberta a possibilidade de conhecer efetivamente a família. Foi possível, assim, dar ouvidos para as falas dos familiares e dos ACS que são da comunidade e convivem com a família desde a infância. Neste momento, é possível conhecer Negro-Gato, um dos membros da família que faz uso de álcool. Ele tem 40 anos e começou a beber abusivamente por volta dos 25 anos quando passou a trabalhar na companhia municipal de coleta de lixo, a partir da influência de colegas que bebiam para suportar o mal-cheiro do caminhão de lixo. Começou neste emprego com seu irmão que atualmente está para se aposentar nesta empresa, mas foi demitido anos depois por faltar o trabalho devido à bebida. Quando está consumindo álcool, passa a maior parte do tempo no mercado do bairro junto com outros viventes da rua. Tem um grupo de amigos que bebem no bairro e há relatos de que tem uma namorada neste grupo. Quando bebe álcool, preferencialmente cachaça, não gosta de comer nem beber água. Por isso, alguns dias depois fica bastante desidratado e emagrecido. Quando se percebe debilitado, Negro-Gato volta para casa e passa uns dias sem beber, se alimentando e hidratando. Ele também suspende a bebida quando consegue algum trabalho (bico), ou quando há alguma demanda de cuidado de sua família, como quando seu irmão faleceu, ou quando seu outro irmão lhe convocou para pintar a casa e para limpar o quintal. Também não bebeu quando a equipe de saúde agendou com ele uma visita. Ao dar visibilidade a esses movimentos de Negro-Gato, os profissionais puderam ver além de quem inicialmente era apenas mais um de uma família de loucos, sendo medicalizado pelo psiquiatra do CAPS. Permitiram-se conhecer, então, um sujeito que tem vida social e cuidado consigo e com a família que na nova concepção de saúde constitui-se um espaço potente na produção do cuidado (BRASIL, 2013) Foi possível então escutar e acolher sua demanda de cuidado, a partir da qual, mesmo reconhecendo que fazia uso danoso de álcool, não desejava abstinência, nem intervenção medicamentosa que lhe “deixava avoado”, sem conseguir trabalhar. Neste momento, foi possível à equipe reconhecer e demandar apoio para as equipes do Consultório na Rua e do CAPS ad, para a produção de cuidados mais sintonizados com os desejos de vida de Negro-Gato, que passava pela manutenção do uso do álcool e pela vivência na rua. A interferência da pesquisa se produziu em várias direções. Na equipe, que a partir da recusa de Negro-Gato a um determinado modo de cuidado, produz novos olhares sobre este sujeito. E em Negro-Gato que na última visita realizada pela pesquisa (pois a equipe de saúde continua com o cuidado), recebe seus cuidadores animadamente, de banho tomado, há dois meses sem beber e com alguns quilos a mais, afirmando que queria se cuidar. Portanto, este acompanhamento da produção do cuidado em saúde nos revelou que os sujeitos produzem a cada dia infinitas possibilidades e conexões de vida, com, sem, ou mesmo apesar, dos profissionais de saúde. Produzir um cuidado que reconheça e legitime a autonomia do sujeito no seu modo de levar sua vida, implica em reconhecê-lo protagonista de sua própria história e da produção de seu cuidado. Este reconhecimento, por sua vez, se torna possível quando o profissional se permite olhar o sujeito, pondo a doença entre parênteses, dando visibilidade para os diferentes modos dos sujeitos de inserirem-se no mundo e construírem suas redes vivas de cuidado.

Palavras-chave


cuidado; saúde mental; álcool e outras drogas

Referências


BRASIL, Ministério da Saúde. Cadernos de atenção básica: saúde mental. Editora MS. Brasília, 2013

GOMES, M.P.C; MERHY, E.E. Pesquisadores in-mundo um estudo da produção do acesso e barreira em saúde mental. Coleção micropolítica do trabalho e cuidado em saúde. Editora Rede Unida, Porto Alegre, 2014.

CAMPOS, R.O., MERHY, E.E. O agir em saúde um desafio para o público. Ed. Hucitec, São Paulo,1997.