Rede Unida, 12º Congresso Internacional da Rede Unida

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NARRATIVA COMO PERFORMANCE NA FORMAÇÃO EM SAÚDE - Práticas inovadoras na formação para o SUS;
claudia maria de lima graça, Livia Maria Santiago

Última alteração: 2015-11-23

Resumo


Nas últimas décadas, experiências de mudanças na formação das graduações em saúde, apontam para o desafio imposto na reorientação do perfil profissional para o Sistema Único de Saúde (SUS), principalmente, por meio da aproximação da universidade com os serviços de saúde; da concepção ampliada do conceito de saúde; da multiplicidade dos cenários de práticas; e da valorização de modos diferenciados de aprendizagem. Dessa forma, entendendo o conhecimento como processo em produção, a partir daquilo que decorre da e na experiência do outro em nós e na experiência de nós no outro, este trabalho tem como objetivo geral a análise da narrativa de JC, aluna do curso de Fonoaudiologia da UFRJ, em uma roda de conversa, onde a aluna compartilhou a sua vivência, expondo seus receios em relação às diferenças e desigualdades sociais, trazendo para o centro da roda a atenção às “vidas marginalizadas do ponto de vista dos atravessamentos identitários de classe social, raça, etnia, gênero, sexualidade, nacionalidade, etc ” (MOITA LOPES, 2006, p.27). Este trabalho se fortalece na importância da construção de espaços em sala de aula e em outros contextos da formação, na valorização da narrativa como performance e como um tipo de organização discursiva potente no processo de aprendizagem, no qual nos produzimos como seres sociais, pelas experiências que remetam às transformações necessárias ao futuro profissional de saúde. Nos últimos anos, a pesquisa narrativa tornou-se importante nas ciências sociais e em outras.  Squire et al. (2014) abordam o quanto a pesquisa narrativa pode ser atraente, e provocam reflexões em relação às possibilidades que o uso da narrativa oferece aos pesquisadores nos mundos sociais, políticos e que envolvam temas em saúde e doença, como também no trabalho, na formação de médicos e outros profissionais da área da saúde e na investigação da narrativa de pacientes. Contexto e a metodologia do trabalho: Os dados do trabalho foram gerados em um campo etnográfico com o grupo de alunos do sexto período, no primeiro semestre de 2014. O contexto da disciplina acontece nos territórios do Instituto Mangueira do Futuro e da Clínica da Família Dona Zica onde a prioridade dos serviços é o morador do Morro da Mangueira. Os encontros acontecem duas vezes na semana e cada aluno é convidado a construir uma cartografia por escrito, de suas afecções produzidas após os encontros com os usuários, em um desenho que dialogue com os acontecimentos e as afetações do cotidiano do trabalho e da vida (ROLNIK, 2007). O diário cartográfico é utilizado como o suporte para registro das experiências, ao mesmo tempo em que a materialidade da experiência no texto possibilita sua releitura e análise que acontece na roda de conversa. A metodologia de análise proposta, consiste na releitura do diário cartográfico por JC, após a sua ida com o ACS da Clínica Dona Zica, no antigo prédio do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esse prédio é situado no morro da Mangueira, onde as pessoas vivem em condições precárias. Alguns procedimentos éticos foram tomados, como por exemplo, o pedido de permissão ao aluno participante para que o seu diário cartográfico pudesse ser utilizado para fins científicos e o nome do aluno usado na transcrição é fictício. Com relação à transcrição e à análise dos dados gerados, ressalto, que as considerações e interpretações que teço neste trabalho são inseparáveis das performances que eu mesma enceno, como docente e participante nessa experimentação. A análise aposta na indissociabilidade entre narrativas e performances identitárias como nos aponta Wortham (2000) e Moita Lopes (2006), uma vez que, as narrativas mostram como as pessoas são e agem em um contexto sócio- histórico. Para a análise, utilizo as pistas de contextualização (GUMPERZ, 1998) e as ferramentas de análise dos posicionamentos nas narrativas autobiográficas oferecidas por Wortham (2000). A seguir apresento um fragmento da narrativa escrita por JC: Excerto 01: “Ao subir ao prédio I, visitei alguns apartamentos, porém um mexeu demais comigo. Naquele local mora uma família, composta pela mãe, a filha que já tem 3 filhos sendo a mais velha com 6 anos, o do meio com 3 e um bebê que na época estava com 4 meses. Além desse bebê, ela estava tomando conta de um outro com 1 mês que havia sido abandonado pelos pais ao nascer. O bebê abandonado não parava de chorar, e então resolvi pegá-lo, e ao acomodá-lo nos meus braços ele se acalmou.  A mãe das outras crianças, olhou para a cena, e logo pediu pelo amor de Deus para eu ou alguma das outras meninas, inclusive a ACS levar o bebê. Disse que não tinha como cuidar e alimentar mais uma criança. Eles vivem com lixos e ratos passando a todo momento. Meus olhos se encheram de lágrimas ao olhar aquele ser tão puro e tão abandonado. E com ele no meu colo pensei no carinho que sempre tive dos meus pais, lembrei do meu afilhado, pelo qual sou apaixonada. Os olhos do bebê estavam fixados aos meus, sentia que ele queria ajuda, como se estivesse se comunicando comigo.” JC enquadra os personagens com os quais interage, expressando a referência de como as pessoas no contexto são responsáveis pelos significados gerados. Ela posiciona-se nas palavras escritas, que como mulher, questiona a performance observada no outro, fazendo uma reflexão sobre os conhecimentos existentes sobre o desempenho da feminilidade, em particular, da função materna. Posiciona-se na função de filha para descrever suas lembranças na interação com os pais e exemplifica a importância do vínculo, descrevendo a sua posição como madrinha, onde adiciona verossimilhança ao evento. Outro dispositivo usado por JC para se posicionar na narrativa é o uso de verbos e formas verbais que descrevem a sua interação afetiva com o outro. JC retrata mundos diferentes: o mundo da sua vida privada, onde as mulheres exercem a função materna com vínculo, proteção e cuidado e do mundo que está conhecendo, onde as mulheres não exercem as funções maternas esperadas. A participante se coloca aos seus interlocutores como alguém que tem ciência dessa contradição. JC descreve o encontro como um espaço aberto a uma produção no campo das relações de poder, nos quais os conhecimentos técnicos específicos da área da saúde já sabidos, dialogam com saberes que emergem do campo da ação, no ato, com o outro, no contexto interacional.   Dessa forma, entendo que o uso da narrativa na formação, contempla os sujeitos em seu contexto sociocultural, político e histórico e, ao mesmo tempo, engaja-se em práticas interrogadoras de seu próprio fazer teórico, como modo de recontar as formas de conhecer e compreender a vida social. Nesse trabalho a força das narrativas, a importância delas para o desenvolvimento pessoal, cultural, social, ético, político, etc. na perspectiva da formação é de extrema relevância para profissionais comprometidos consigo, com o outro, com os seus agires nas sociedades em mutação. Percebo o quanto esse tipo de metodologia enaltece a interdisciplinaridade e mostra o quanto a utilização das narrativas e da construção dos diários cartográficos, no contexto da formação em saúde, tem contribuído para mudanças dos participantes, docentes e alunos, através das conversas, oriundas das situações imprevistas, desconhecidas e novas, que demandam um novo modo de produzir conhecimento.  

Palavras-chave


narrativas; performances; formação em saúde; educação;

Referências


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